O Girona e o Princípio de Peter
Os 4-3 ao Atlético Madrid mostraram uma equipa em êxtase, uma comunhão perfeita entre treinador e jogadores e entre estes e os adeptos. Tão perfeita que faz adivinhar dificuldades de crescimento.
Valeu por cada minuto, o Girona FC-Atlético Madrid de ontem à noite. Os catalães impuseram-se por 4-3, com um golo nos descontos que mais parecia o último foguete de um esplendoroso fogo de artifício, mantendo a coliderança da Liga Espanhola, a par do Real Madrid, campeão de Inverno apenas por ter ganho o confronto entre ambos. A não ser que a chegada de Vítor Roque revitalize bastante o Barça – que se vencer hoje em Las Palmas dobra no campeonato sete pontos atrás dos primeiros –, o título parece já se resumir a uma corrida a dois, entre um Real Madrid a lamber as feridas e a gerir a escassez provocada por uma inacreditável onda de lesões e um Girona FC eufórico, a quem se colocam acima de todos os desafios de lidar com a valorização exponencial dos jogadores e de manter o foco de um plantel de cabeça à roda com os rumores de mercado. É um pouco a aplicação do Princípio de Peter à equipa do Girona FC. Também uma equipa tende a crescer até ao seu nível de incompetência – e o deste grupo que alimenta os sonhos catalães pode bem estar à beira de se apresentar. Achava-se que tinha sido na derrota com o Real Madrid, mas o Girona FC recompôs-se desse 0-3 e não voltou a ser batido por mais ninguém, lançando as bases para que se pense que pode tornar-se uma das raras equipas pequenas capazes de desmentir a teoria – a mais célebre dos últimos tempos terá sido o Leicester City de Claudio Ranieri. A tarefa de Michel, o treinador de Vallecas que comanda este Girona FC, já não seria fácil, porque formar um plantel com quatro jogadores emprestados – Eric García, Yan Couto, Pablo Torre e Savinho – já implica a necessidade de os chamar à realidade sempre que eles se lembram que pertencem ao poderoso FC Barcelona ou ao grupo City, mas torna-se ainda mais complicada agora que chega Janeiro, reabre o mercado de transferências e muitos outros integrantes do plantel começam a ter reflexos mais concretos do muito que se tem escrito sobre eles (e eu também fiz a minha parte, quando o fenómeno começou a ganhar corpo, como pode ler aqui). Basta olhar para o Transfermarkt e fazer contas de somar para perceber que o plantel do Girona FC valorizou 80 por cento durante o segundo semestre de 2023. De acordo com aquele portal alemão especializado no mercado de transferências, os 24 jogadores que estão à disposição de Michel – ele também cada vez mais cobiçado, por exemplo na Premier League – valem hoje um agregado de 223,8 milhões de euros, mais 100 milhões do que valiam no início da época. Valorizaram-se os emprestados, como Savinho, um dos extremos mais excitantes do futebol mundial, Yan Couto, o lateral que já passou pelo SC Braga, ou até Eric García, o central que já jogou por Guardiola mas que entretanto voltara ao Barça e saiu cedido, por se julgar que não estava à altura. O primeiro multiplicou o valor de mercado por seis, de cinco para 30 milhões de euros, e, de dispensável no Troyes, um dos membros mais modestos do grupo City, já se apresenta como séria possibilidade para o navio-almirante, o próprio Manchester City. Couto triplicou o valor de mercado, de quatro para 12 milhões, e chegou à seleção brasileira, o que também levanta a possibilidade de um dia jogar pelo Manchester City – algo que poucos admitiriam quando o viram na Liga Portuguesa. E Eric García acrescentou cinco milhões aos dez em que estava creditado. Mas valorizaram também os jogadores da casa, tornando a época numa fantástica operação de mercado mesmo que no final o título acabe por sorrir ao Real Madrid. O central-lateral canhoto Miguel Gutiérrez foi de dez para 20 milhões, o médio Aleix García, já com 26 anos, imitou-o, levando o Barça a achar que tinha apostado no homem errado quando foi a Girona buscar Oriol Romeu, há seis meses, mas aos dois há a acrescentar as valorizações de Yangel Herrera (de cinco para 20 milhões) ou do atacante Dovbyk (de 15 para 28 milhões). Na cabeça de todos, o turbilhão de emoções será mais frenético do que foram os 4-3 de ontem. Haverá em cada um questões a puxar a equipa para baixo – “será que valho mesmo tanto?” ou “farei agora o contrato da minha vida?” – e outras que, devidamente canalizadas, poderão contribuir para a manter lá em cima, nomeadamente aquelas em que os jogadores acreditem que podem ser campeões. A época de 2023/24 será sempre memorável para a equipa da família Guardiola, mas o quão memorável virá a ser depende da capacidade da equipa técnica para adiar a aplicação do Princípio de Peter à sua carreira na Liga.
A Liga Centralização. Excelente trabalho, o apresentado pelo Record, hoje, a propósito das propostas já em posse da Liga Portugal para a centralização dos direitos televisivos. Dali se tiram algumas conclusões. A primeira é a de que a Liga Portugal não tem sido particularmente competente ou proativa na gestão deste processo – e, como em tudo, caberá aos clubes vir a atalhar caminho para que isso mude antes de 2028. A segunda é que o futuro – já o presente em alguns mercados que estão à frente do nosso – anuncia uma espécie de venda de direitos com intermediação agressiva, daquelas que entram no capital da empresa vendedora. É isso que propõem, por exemplo, a Quadrantis ou a CVC Capital Partners, que até já o fez com a Liga Espanhola, por exemplo. Nunca a Olivedesportos terá sequer achado que podia atrever-se a tanto. A terceira é que os defeitos da gestão do processo não devem desviar-nos do que é essencial. E o essencial é que a ideia é boa e justa. Falta aprender a executá-la.
O domínio do City. Acredito sempre muito em jornalistas e olhem que não é por nenhuma espécie de corporativismo. Mas nestas coisas dos prémios, acho sempre que os mais justos são os que saem da votação vinda do exterior, não dos adeptos, que votam com o coração – e nisso ganham sempre os jogadores dos clubes com mais gente –, mas dos jornalistas, que já são genericamente capazes de pôr a razão à frente. Todos temos clube, como é evidente, mas a esmagadora maioria consegue anular esse fator no momento de escolher. É por isso que levo muito a sério o trabalho apresentado na edição de hoje pelo L’Équipe, com a escolha do onze internacional do ano de 2023, votado pelos jornalistas da redação. E é abismal o domínio do Manchester City, que mete oito jogadores nesse onze. Sete e meio, pronto, que Gundogan já saiu para o Barça. No ano passado, por exemplo, o Real Madrid campeão da Europa só tinha metido Courtois, Casemiro, Modric e Benzema. Desta vez, do City, lá estão o guarda-redes Ederson, o lateral-direito Walker, os centrais Rúben Dias e Stones, os médios Bernardo Silva, Rodri e Gundogan e o avançado Haaland. Neste grupo só se intrometem o lateral esquerdo Theo Hernández, do Milan (Aké é segundo), o médio Bellingham, do Real Madrid (De Bruyne é quinto, atrás não só do inglês e de Bernardo mas também de Vini Júnior e Griezmann), e o avançado Mbappé, do Paris Saint-Germain (o segundo do City na tabela é Julian Alvaréz, em nono). Também são citados os portugueses Cancelo (quarto lateral direito), Bruno Fernandes (14º médio ofensivo) e Rafael Leão (oitavo atacante), sendo Grimaldo (sexto lateral esquerdo) o único presente com passagem pela Liga Portuguesa. E, sim, haverá aqui algum patriotismo francês em excesso, prova de que nem os jornalistas conseguem ser totalmente isentos.