O futuro do futebol
A decisão do Tribunal Europeu de Justiça abriu portas a um novo futuro, em que a UEFA e a FIFA deixam de poder abusar da sua posição dominante. Mas não estou nada convencido de que ele seja radioso.
Esqueçam a Superliga, o Florentino, o Laporta, que até já tem um pouco de vergonha daquilo em que se meteu e por isso se mostra muito mais comedido, a A22 e o senhor Reichart. Estes tiveram a sua oportunidade em 2021 e desperdiçaram-na com um projeto feito em cima do joelho, ganancioso, porque lhes garantia tudo a eles e quase nada aos outros. Agora, por mais méritos que tenham as propostas que venham a fazer – e o formato ontem proposto pela A22 é muito melhor do que qualquer um alguma vez criado pela UEFA –, elas nunca avançarão, porque toda a Europa está contra, como se viu na forma como quase todas as equipas da Liga Espanhola posaram ontem, frente a uma placa que dizia “Ganha-o no campo”, em alusão ao projeto antigo da A22. Está contra a UEFA, porque perderia a possibilidade de ser ela a regular, organizar e controlar a distribuição da receita. Está contra a ECA, porque a UEFA já soube arregimentá-la para o seu campo, distribuindo vagas nos diversos comités – e ainda ontem Nasser El-Khelaifi, o presidente qatari do Paris Saint-Germain que ao mesmo tempo é o líder da Associação Europeia de Clubes, surgiu ao lado de Aleksander Çeferin, presidente da UEFA, em conferência de imprensa contra o predomínio da vertente económica no projeto de Superliga, naquele que bem podia ser uma espécie de Momento Zen do dia. Estão contra os ingleses porque, além da avassaladora reação popular face à proposta de 2021 – nascida da noção de que a Superliga prejudicaria severamente a competição interna e, ao mesmo tempo, do convencimento de superioridade nacional que só os ingleses têm dentro deles –, sabem que a Premier League é o fator que melhor explica a superioridade económica que conseguiram sobre o resto do continente. Abdicar dela para igualizar o acesso às receitas com a Europa, passando a funcionar dentro da mesma competição, do mesmo mercado, seria abdicar da Superliga que eles já puseram em funcionamento. E estão contra todos os outros grandes clubes europeus, incluindo os portugueses, por uma questão de ‘realpolitik’, porque já entenderam que essa não é uma carruagem que lhes convenha apanhar. Florentino pode continuar a prestar declarações frente às 14 Taças dos Campeões Europeus ganhas pelo Real Madrid, como fez ontem, para legitimar o que tinha para dizer, que ninguém irá atrás dele. A Superliga será um dia uma realidade, porque a ela abriu portas a decisão ontem publicada pelo Tribunal Europeu de Justiça, mas não será nunca esta, a de Florentino.
Um pesadelo de governance. O que decidiu o tribunal, então? Pois muito bem: tornou oficial o que já toda a gente tinha percebido, que a organização atual do futebol europeu de elite é um pesadelo de governance e contraria todas as regras de concorrência. Temos uma entidade reguladora, que é a UEFA, que não só é ao mesmo tempo a organizadora de eventos, com o poder de aplicar sanções a quem quer que decida concorrer com ela nessa vertente, como depois controla a distribuição da receita por esses eventos criada. Isto é digno do argumento de um filme sobre a mafia ou sobre a Lei Seca. O que o tribunal decidiu foi que a UEFA – e a FIFA, já agora, se lhe aplicarmos a jurisprudência – está a abusar da sua posição dominante, que não pode impor sanções a quem queira desafiar-lhe este monopólio. Nada convencido da transparência da UEFA e da FIFA, que não estou, não tenho problemas em aplaudir esta conclusão, mas a verdade é que temo pelo que aí vem, porque sou ainda menos adepto do liberalismo e do capitalismo mais selvagem a que ela abre portas. Há pelo menos uma década que defendo que a criação de uma Superliga aberta, à qual todos os clubes possam aceder por mérito, é a única forma de as nossas melhores equipas voltarem a ser competitivas no plano internacional, porque é a forma mais rápida de anular a desvantagem de escala que temos neste momento. Se o último classificado da Premier League recebe muito mais da TV do que o campeão da Liga Portuguesa – e neste incluindo as receitas da Champions – nunca haverá maneira de virmos a competir consolidadamente com os Citys e os Arsenals desta vida. No entanto, tive sempre clara a ideia de que esse projeto só será positivo se for criado no seio de uma entidade supranacional que mantenha a necessidade de alimentar financeiramente a base da pirâmide do futebol, coisa que a UEFA sempre vai fazendo. Creio que há, da parte da esmagadora maioria dos clubes de topo na Europa, boa-vontade para com a UEFA, o que de certa forma extingue o receio de uma rebelião. Não foi só a A22 que ganhou, portanto, com a decisão de ontem. A UEFA também ganhou, já que tem os grandes clubes a seu lado. Falta-lhe agora dar os passos necessários para cumprir as decisões do tribunal. O primeiro será abrir um concurso público, totalmente transparente, com um caderno de encargos que defenda os valores do futebol, para vender a uma empresa externa o direito a organizar as provas europeias de clubes que ela regula e a explorar o marketing e os direitos televisivos dessas competições. Da forma como isso for feito, da rapidez da UEFA para o aceitar, dependerá não só o futuro do futebol como a noção de que, afinal, para este ganhar, Nyon também terá de perder.
Que lição! Hoje há final do Mundial de Clubes, Manchester City contra Fluminense. O jogo vai seguramente valer a pena, que frente a frente estão duas belíssimas equipas, mais poderoso o City, mais imprevisível o Fluminense. Os ingleses são favoritos, mas um troféu os brasileiros já levaram. Vale a pena gastar cinco minutos do seu dia a ouvir o que disse ontem Fernando Diniz (o vídeo está aqui) acerca da maneira como o encadeamento jornalistas-redes sociais-público vê o futebol. Temos de ver sempre as coisas a favor de ou contra algo. Temos de ser sempre maravilhosos ou fracassados. Se não o fazemos assim somos tantas vezes apelidados de cobardes que não têm a coragem de dizer as verdades. Já várias vezes escrevi aqui que é fácil surfar a onda das declarações bombásticas, que colhem aplauso ou ódio e, por isso, são empoladas pelas redes sociais e condicionam a perceção que o público tem do futebol. Não são coragem – são oportunismo. O discurso de Diniz não era contra o artigo do Telegraph em que Sam Wallace escreveu que os campeões da Libertadores pareciam uma equipa feita para um jogo de solidariedade. O discurso de Diniz era precisamente contra quem escolhe olhar para o futebol nessa lógica de antagonismo – e muitos dos que o fizeram e fazem estavam ali, à frente dele, e são brasileiros. Como diz Diniz, o Fluminense hoje pode ganhar, empatar ou perder, que não é por isso que terá ele razão em confiar em Marcelo, Felipe Melo, Fábio ou Ganso, ou que terão razão os que o criticam por confiar numa equipa de reformados. A vida está cheia de zonas cinzentas que a necessidade de radicalização exigida pelo caminho de sucesso no mundo das redes sociais tende a extinguir, mas cujo reconhecimento faz falta para se ser justo. E a noção disto é um título para o treinador do Fluminense.
O momento Gouveia. Tiago Gouveia entrou muito bem na última meia-hora que a equipa do Benfica fez ontem contra o AVS e marcou mesmo um dos golos da vitória encarnada por 4-1, a sentenciar a presença na Final Four da Taça da Liga. É certo que já entrou com o jogo fácil, com a resistência do adversário – que precisava de ganhar por dois, estivera a ganhar por um mas já estava a perder – estilhaçada, mas nunca se pode vencer senão o adversário que se tem à frente e tudo o que Gouveia tem feito por merecer são mais minutos em circunstâncias mais exigentes. Depois se verá se responde bem ou mal. É rápido, tem boa noção dos tempos de desmarcação, finaliza bem, mas ainda tem um problema: para o género, à frente dele estão Rafa e Gonçalo Guedes. Eis a razão pela qual a gestão da escassez facilita a afirmação de novos valores, mas ao mesmo tempo pode ser inibidora quando se pensa em ganhar títulos. Porque as certezas são sempre mais seguras do que as incógnitas.