O futebolista universal
Pelé era global no campo, tinha tudo o que tiveram os maiores depois dele. Foi venerado por todo o Mundo. E, como futebolista, antecipou a globalização para fazer riqueza. O número um.
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Pelé foi o primeiro – e provavelmente o único – futebolista universal. Depois da morte do Rei, num momento de clarividência, Neymar escreveu que “antes dele, o 10 era só um número”. E era. Foi com Pelé que o 10 se tornou o símbolo do craque, do melhor jogador da equipa, mais até que da posição em campo. Porque Pelé não tinha posição em campo. João Saldanha, o jornalista que chegou a ser selecionador brasileiro antes do Mundial de 1970, disse uma vez que escolheria Pelé até como defesa-lateral, médio-defensivo ou guarda-redes. Em qualquer lugar, para qualquer tarefa, o seu talento, mesclado com a sua potência muscular e com uma intuição que quase fazia parecer que o futebol tinha sido desenhado de propósito para ele, Pelé seria sempre o melhor de todos. Aquele a quem Jorge Valdano já chamou hoje, no El País, “rei por eleição popular”, morreu ontem, com 82 anos, e foi o primeiro jogador global, em mais do que uma aceção da palavra. Apesar de ter jogado antes da globalização e de os seus mais brilhantes golos chegarem até nós em imagens foscas, muitas delas ainda a preto e branco, sem a ajuda do HD, quanto mais do 4K.
Não há nada melhor para acalmar as certezas absolutas de fanáticos de Messi ou de Cristiano Ronaldo do que mostrar-lhes imagens do futebol de Pelé. Anda a circular pelo YouTube um notável trabalho de edição, com imagens dos mais icónicos lances de todos os melhores do Mundo depois dele, de Cruijff a Maradona, de Messi a Ronaldo Nazário, de Ronaldinho a Zidane, de Iniesta a Cristiano Ronaldo. Os lances são sempre seguidos de jogadas antigas, em que Pelé fez exatamente a mesma coisa. Tudo o que eles fizeram, Pelé já tinha feito. E fê-lo até em jogos de que não há registo filmado, como o Fluminense-Santos FC de 1961 em que marcou o famoso “Gol de Placa”, assim chamado porque ficou eternizado numa placa no Maracanã. Da mesma forma que mudou o significado do número 10, Pelé fez entrar para o léxico do futebol a expressão que a partir daí passou a ser usada para designar os mais belos golos. E ele fez muitos, quase 1.300. Ninguém sabe ao certo quantos, nem isso é assim tão importante, porque a eclosão do fenómeno Pelé, somada ao início das transmissões de jogos pela TV, conduziu à popularização do craque e levou o Santos FC e até a própria seleção do Brasil a entrar numa espécie de digressão permanente em busca dos cachets que por todo o Mundo se pagavam para o ver jogar. Pelé chegou a fazer mais de 100 jogos num ano em mais de uma ocasião. Jogava de dois em dois, de três em três dias, com longas e esgotantes viagens pelo meio. Jogava contra defesas que batiam a sério, numa altura em que os atacantes não eram alvo de proteção, como são agora. E aí se revelou a faceta combativa de um astro que não era só filigrana e potência: “Se você bater, leva troco”, dizia aos defesas que o marcavam de forma mais implacável.
A admiração de Pelé pelo português Vicente – a quem escreveu quando este teve o acidente automóvel que lhe acabou com a carreira – vinha da capacidade do jogador belenense para o marcar sem recorrer à violência. Porque a violência foi parte da vida de Pelé – saiu lesionado dos Mundiais de 1962 e 1966, por exemplo. É, ainda assim, o único tricampeão Mundial da história – ainda que a sua contribuição em 1962 tenha sido mínima, porque se lesionou no arranque da competição. Pelé chegou ao topo da montanha em 1970, com 30 anos, quando conduziu aquela que muitos consideram a melhor seleção de sempre à conquista definitiva da Taça Jules Rimet, no primeiro Mundial do México. Um ano antes, em 1969, numa das intermináveis digressões do Santos FC, a possibilidade de ver jogar Pelé foi o suficiente para ser decretado um cessar-fogo de três dias na guerra civil entre os secessionistas do Biafra e as forças governamentais da Nigéria. Ainda faltavam cinco anos para o mítico “Rumble in the Jungle, o combate no Zaire de Mobutu em que o agente Don King e o pugilista Muhammad Ali começaram a capitalizar a negritude de que Pelé foi o primeiro grande embaixador – Jesse Owens nunca teve indústria por trás dele e só se tornou um mito a posteriori. Em 1974, meses antes do combate, os brasileiros ainda tentaram convencer Pelé a jogar mais um Mundial, na RFA, mas já não o conseguiram. O Rei era capitalizável e tinha cruzado a fronteira para o outro lado da força. Queria ganhar dinheiro, vivia obcecado com as suas origens pobres e a urgência de garantir que não passaria dificuldades no futuro. Foi assim que, em Junho de 1975, deu o passo final no sentido da globalização, deixando-se convencer pela Warner Brothers e pelos que queriam aproveitar o potencial do lançamento do futebol nos Estados Unidos, investindo na NASL, a Liga que também atraiu, entre outros, Eusébio.
A chegada de Pelé ao Cosmos de Nova Iorque marca uma nova era na vida do Rei. O negócio passou a ser o fundamental, a sobrepor-se ao futebol. Veio o cinema. Vieram os patrocínios, tanto a nível pessoal como em parcerias com a FIFA. Nessa altura, Pelé confirmou aquilo que a sua aceitação passiva dos desvarios da ditadura militar no Brasil, nos seus melhores anos, quando foi decretado “tesouro nacional” e podia ter uma palavra a dizer, já fazia suspeitar: era um homem do sistema. Se o futebol parecia desenhado para encaixar na perfeição no seu corpo, Pelé fez o que podia para jogar dentro das regras e tirar o máximo benefício delas. Não foi nunca um contestatário como Maradona ou Cruijff. Nunca lutou por causas – ainda que a lei que fez passar em 1998, como ministro de Fernando Henrique Cardoso, tenha sido um marco importante nos direitos dos jogadores no Brasil. Global dentro do campo, universal na admiração que foi granjeando por todo o planeta, Pelé foi ainda transversal a tudo aquilo que tenha que ver com futebol. É por isso que foi o maior de todos os tempos.