O fato de Farioli
Em Farioli, o FC Porto tem um treinador do mesmo molde de Anselmi, um hipster que põe a ideia à frente de tudo. E mantém-se a questão. Há no Olival jogadores capazes de vestir o fato italiano?
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A aposta do FC Porto em Francesco Farioli, a terceira escolha convicta de André Villas-Boas nos últimos 12 meses de presidência, tem até mais razões que a justifiquem do que teve a contratação de Martín Anselmi, o argentino que o precedeu. Farioli é uma das promessas europeias na área dos treinadores, um valor emergente que vem com o carimbo de Roberto de Zerbi, seu antigo chefe de equipa, mas já fez bons trabalhos a solo, tanto na Turquia, como em França e – sim – nos Países Baixos. Tal como com Anselmi, porém, nada disto significa que vá resultar naquilo que os portistas tanto querem, que é a reconquista do título de campeão. Para isso, mais do que saber se os jogadores do FC Porto são bons ou maus, há que verificar se são os jogadores certos. É que com Farioli, como com Anselmi antes dele, o que o FC Porto está a comprar não é só um treinador. É uma ideia. E se isso vale mais do que a contratação de um treinador que seja um simples funcionário do economato, capaz de gerir as existências, depois é preciso alimentar-lhe essa ideia com meios para a cumprir.
A curta passagem de Martín Anselmi pelo FC Porto veio contradizer os versos iniciais de Livre, o poema de Carlos Oliveira depois musicado por Manuel Freire. “Não há machado que corte a raiz ao pensamento”, escrevia o poeta. Mas o ideário de Anselmi foi sendo gradualmente decepado pela falta de opções capazes de o porem em prática. Villas-Boas ainda não explicou porque mudou de opinião de forma tão radical, despedindo o treinador semanas depois de, já terceiro na Liga, ter garantido que ele iria começar a nova época – se é que mudou, que não estava apenas a prolongar a agonia debaixo do comando do argentino porque não podia ainda contratar-lhe o sucessor, o que também não seria particularmente inteligente. Passou-se algo de grave no Mundial, além de o nível de jogo ter continuado baixo? Ou o presidente refletiu acerca da facilidade com que, gradualmente, o treinador, contratado em função da ideia que trazia com ele, foi começando a abdicar de princípios-base à medida que ia percebendo que com os jogadores à disposição não conseguia pô-los em prática com um mínimo de garantias? O que é que Villas-Boas despediu? A incompetência ou a falta de convicção? Dir-me-ão que já não interessa, porque Anselmi foi para casa. Mas interessa, sim, porque a substituí-lo estará um treinador do mesmo molde ideológico. O que é que Villas-Boas está a contratar? Procura competência ou firmeza de convicções?
Farioli veio da oficina de Roberto de Zerbi, com quem esteve no Benevento e na US Sassuolo antes de seguir para a equipa técnica de Cagdas Atan, no Alanyaspor, da Turquia. Foi técnico principal no Karagumruk, no próprio Alanyaspor (mais tarde) e deu-se a conhecer à Europa no OGC Nice e no Ajax. Não tem títulos – e o que perdeu nos Países Baixos, desperdiçando sete pontos de avanço nas últimas quatro jornadas, deu que falar –, mas é na mesma um dos mais elogiados treinadores europeus da nova geração, sobretudo para os circuitos mais focados na ideia de jogo, no pensamento estruturado sobre o futebol, e bem menos nessa coisa ainda assim nada despicienda, que são os resultados. O que isto quer dizer é que o futebol de Farioli – como o de Anselmi – tem marca, é um jogo de autor, de assinatura, com traços próximos a De Zerbi. Mesmo variando a estrutura de base – em França ainda usou com frequência o 3x4x3, mas no Ajax estabilizou no 4x3x3 –, as equipas de Farioli foram mantendo princípios inalienáveis, como a pressão forte na saída de bola adversária, o início de construção muito baixo e apoiado, as trocas posicionais e os contramovimentos, de maneira a encontrar espaços dentro dos blocos adversários. Estes serão alguns princípios de que o italiano dificilmente abdicará. E, mais do que perceber se os jogadores do FC Porto são bons ou maus, há que avaliar se eles conseguem ser bons na interpretação destas ideias.
Vamos por partes. No Ajax, Farioli estabilizou no 4x3x3 que até parece mais adequado ao plantel azul-e-branco do que o 3x4x3 de Anselmi, por falta de gente que possa jogar como defesa-central. E já estou a adivinhar aí uma interpelação: “então se o homem até mudou de sistema, como é que é assim tão convicto no tal futebol de autor?” É. Porque os princípios do 4x3x3 do Ajax eram similares aos do 3x4x3 em que jogava o OGC Nice e aquilo que define as equipas, mais do que o sistema, é a maneira como o põem em prática. A saída de bola das duas equipas de Farioli era sempre baixa: pontapé de baliza curto, a baixar mesmo até à linha de fundo, de maneira a atrair a pressão adversária. Nesse primeiro momento, os laterais ainda ficam baixos, mas assim que a bola entra num dos centrais sobem para uma segunda linha, a par do médio-centro, atrás da primeira zona de pressão adversária, linha essa que deve ser procurada pelos dois centrais e pelo guarda-redes, em jogo sempre apoiado – as saídas longas, uma das especialidades de Diogo Costa, não estavam no menu. Há no FC Porto centrais com esta qualidade de construção aliada a segurança na posse, com esta simbiose entre risco e certeza? Francamente, não creio. Varela pode ser aquele médio-centro, Martim (até mais do que João Mário) e Moura podem ser os laterais, mas os centrais que lá estão ou são seguros ou têm capacidade de ligar sob pressão. Não há um que acumule as duas virtudes, mesmo que os dois últimos contratados (Otávio e Nehuén Pérez) tenham custado quase 30 milhões de euros.
Se defensivamente a ideia de Farioli passa por uma forte pressão inicial com os cinco da frente e depois o recuo rápido para um 4x5x1 próximo da área, a defender baixo – e esse é o segredo para a segurança defensiva –, já em ataque posicional, as suas equipas adotam um 2x3x3x2 cuja chave está nos médios-ofensivos. Os dois “10”, chamemos-lhes assim, são os jogadores dotados de maior liberdade criativa: devem começar abertos nas alas, para atrair marcações e libertar mais o meio do campo, mas depois têm de possuir a capacidade de ler futebol, de ver onde têm de surgir, muitas vezes em contra-movimentos com o ponta-de-lança. Este busca as entrelinhas, em constantes desmarcações de apoio que lhe permitam ligar a equipa e, ao mesmo tempo, libertar o meio do ataque para as diagonais dos extremos, os únicos que ficam sempre profundos e, mais do que o cruzamento – que as equipas de Farioli não cruzam – procuram a área para finalizar. Até pela tendência de Farioli para, mesmo buscando ligações preferencialmente seguras, partir a equipa e aproximar os dois 10 do trio da frente antes de acelerar com bola, Mora e Gabri Veiga podem ser esses dois médios criativos, com Pepê a funcionar como uma segunda linha para a tarefa. Há a expectativa de que William, até mais do que Gonçalo Borges, possa ser um dos extremos. Mas, quem será o outro? E o que se faz com Samu? O FC Porto volta a apostar num treinador que quer que o seu ponta-de-lança funcione como elo de ligação e, tal como se viu com Anselmi, o espanhol é bem mais forte na área ou no ataque à profundidade do que a dialogar com os colegas.
Francesco Farioli é um dos mais interessantes treinadores da nova vaga europeia, mas ainda sobram imensas dúvidas acerca do que ele pode fazer no FC Porto. Porque o alfaiate italiano não vem para fazer um fato por medida. Ele já desenvolveu um conceito de pronto-a-vestir e, como em todas as grandes marcas, ou se tem corpo para envergar o traje ou vão sempre notar-se as gordurinhas a saltar para fora do slim fit.
Nota: O Último Passe vai estar aqui de segunda a sexta-feira (excetuando feriados) até 14 de Julho, um dia depois da final do Mundial de clubes. A 15, o primeiro dia útil de defeso, sairá a primeira edição dos Reis da Europa, que depois seguirão a correnteza normal, com todos os campeões nacionais desta época, da Albânia à Ucrânia, numa periodicidade que eu gostava que fosse diária mas que ainda não sei se conseguirei manter tão frequente - até porque há um livro novo em fase de conclusão e me atrasei com a fase de escrita... A 4 de Agosto, com o início de 2025/26, voltará o Último Passe, mas em versão vespertina (às 19h), eventualmente não diária. A minha crónica de opinião será um dos conteúdos, esses sim diários, oferecidos apenas a subscritores Premium, mas poderá alternar com outros textos. A partir de 4 de Agosto, também, mas logo pela manhã, terei para vós (para todos, que este será conteúdo gratuito) a Entrelinhas diária, uma leitura de cinco minutos com tudo aquilo que precisam de saber para manter as conversas sobre futebol nas pausas para café no trabalho.
Para um leigo como eu, não será Farioli um Peseiro dos seus tempos áureos?