O encaixe de Renato
Em condições ideais, Renato Sanches pode ser um acréscimo de qualidade para o Benfica. Mas onde é que ele encaixa no imutável 4x2x3x1 de Schmidt? E o que é que isso nos diz do projeto-Benfica?
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O regresso de Renato Sanches ao Benfica, por empréstimo de um ano do Paris Saint-Germain, encerra em si uma série de dilemas, que vão do aspeto físico ao tático com passagem muito importante pelo financeiro e pelo político. O físico é o primeiro de todos, porque equaciona a capacidade do jogador para voltar a ser utilizado regularmente, coisa que não lhe aconteceu nos últimos dois anos. O tático é o que se coloca a seguir, porque é preciso o treinador saber o que quer fazer com ele, se o quer para a dupla de médios ou para jogar a partir da direita ou se para fazer numas vezes uma coisa e noutras a outra. Mas é quando se chega às finanças e à visão de clube que a administração tem de ter que as coisas se tornam verdadeiramente fulcrais e, apesar de tudo, que há grandes diferenças entre o regresso consumado de Renato e outro, este ainda apenas sonhado, de João Félix.
O dilema físico não é do domínio da adivinhação mas traz algo de fé agarrado. É claro que há exames médicos, testes físicos que podem ser feitos, mas seguramente que tanto o PSG como a AS Roma os fizeram a Renato antes de nele apostarem e de verem as apostas furadas. Nos dois últimos anos, o jogador foi uma sombra de si mesmo, deitando por terra as promessas de retoma que tinha deixado no ar em três épocas no Lille OSC. Foi titular oito vezes em Paris e três em Roma, somou ao todo 1164 minutos de competição. Em dois anos... É certo que Renato nunca foi assim um prodígio de continuidade, que desde a saída do Benfica, em 2016, o máximo que fez foram 33 jogos num ano, entre o Bayern e o Lille OSC, em 2019/20. E é por isso que aqui se mistura a componente de fé: a fé de que um regresso a casa possa de alguma maneira vir a conjurar o que há de melhor no jogador, de maneira a que ele volte a incarnar o médio que tanto ajudou Rui Vitória a ganhar o campeonato de 2016. Às vezes acontece, com a proximidade da família, dos treinadores de formação, dos “conselheiros informais” que lá estavam nos bons momentos.
E é por isso que é importante trazer Roger Schmidt para a equação. Já se viu que o alemão não muda a fórmula, que o seu grande desafio será o de, através do preenchimento das vagas no seu 4x2x3x1 idealmente pressionante, com extremos muito por dentro, laterais projetados e médios posicionalmente seguros, transformar o Benfica de 2024/25 numa versão que seja mais próxima da que foi campeã em 2022/23 do que da que claudicou em 2023/24. Ora, nesse 4x2x3x1, onde encaixa Renato? Com Vitória, em 2016, foi segundo médio de um meio-campo a quatro, ainda que com Pizzi a vir muito dentro a partir da direita – e já se sabe que nesse caso as dinâmicas são radicalmente diferentes. O melhor Renato, um médio explosivo, capaz de imprimir acelerações em posse e de queimar linhas com bola, casa mal com aquilo que são os médios-centro tradicionais de Schmidt. O alemão prefere médios que fiquem a médios que vão. Mesmo Enzo Fernández, o maior upgrade de qualidade na primeira equipa de Schmidt, era um médio que impunha mais a diferença pela capacidade pressionante no momento sem bola e pelas trajetórias de passe que descobria desde zonas mais baixas do campo do que pela forma como surgia na frente – e quando lá aparecia era quase sempre em corridas sem bola para finalizar.
Dito isto, jogar com Renato no par de médios pode ser um problema para os equilíbrios de que Schmidt tanto gosta naquele eixo de estabilidade. Restar-lhe-á então utilizar o jogador a partir da direita, como chegaram a fazer Rui Vitória e sobretudo Fernando Santos, na seleção? É possível. Schmidt gosta de meter os extremos por dentro, de maneira a ter a equipa mais junta no momento da perda da bola. É por isso que uma das chaves do sucesso deste Benfica é, por exemplo, meter Aursnes no trio de suporte ao ponta-de-lança em vez de o baixar para o quarteto defensivo, como aconteceu na época passada: dessa forma, vai melhorar a capacidade de pressing na frente e simplificar o processo de definição em criação. Mas poderá o Benfica ter dois jogadores desses – Renato e Aursnes – no trio da frente? Para já, Schmidt até tem jogado com João Mário na direita, outro que também é muito mais médio do que avançado. Mas na maior parte dos jogos não lhe fará falta ter ali, além de um segundo avançado, outro homem que desequilibre no um-para-um, no brilho individual? E se a ideia não é essa, que sentido faz ter no plantel Di María, Neres, Schjelderup e Tiago Gouveia, já para não falar de Marcos Leonardo e Prestianni (ainda que estes pareçam, com Kökçü, mais orientados para virem a ser segundos avançados)?
Ora, é aqui que entra na equação a visão de projeto da administração, que deve ser ao mesmo tempo desportiva, financeira e política. Digam-vos o que disserem, o objetivo das equipas de futebol é ganhar jogos e campeonatos, não é ganhar dinheiro. Mas é também não perder dinheiro, porque se o perdem não são viáveis no médio e longo prazo. Regra geral, como o futebol em Portugal não fatura aquilo de que precisa para ser competitivo internacionalmente, fazem-se contas à criação de mais-valias nas transferências, pelo que uma das variáveis é sempre a da margem de progressão dos jogadores – e é isso que mais desaconselha a entrada nos plantéis de jogadores emprestados. Qual é o racional de promover um jogador cujo passe não pertence ao clube, logo é insuscetível de gerar mais-valias? Só pode ser uma: tratar-se de um jogador que ajude muito a ganhar troféus, dessa forma contribuindo para a valorização dos que com ele estão no grupo. Renato Sanches é, hoje, esse jogador? E quantos desses jogadores encaixam na política global do clube sem a prejudicar. Zero são poucos. Mas quantos é que são muitos?
Se olharmos para o Benfica numa lógica financeira e política, a extensão do plantel leva a que se questione até que ponto é que jogadores como Otamendi e Di María, por uma questão de idade associada ao estatuto que levou Schmidt a dar-lhes a quase totalidade dos minutos de competição, mas também de custo, não são entraves autoimpostos à afirmação de gente como Tomás Araújo, Schjelderup, Prestianni ou Marcos Leonardo. Sim, a competição nunca fez mal a ninguém – mas isso só se aplica se houver de facto competição e não titulares por decreto. E é por isso que a chegada de jogadores por empréstimo só faz sentido se satisfizerem uma de duas condições: ou eles dão garantias mais ou menos sólidas de que com eles se ganha ou há maneira de assegurar que o eventual sucesso deles acabará por se refletir também nas contas do clube que os acolhe, através de cláusulas de compra que sejam acessíveis.
No caso de Renato, o Benfica acautelou esse tema, incluindo uma opção de compra de 10 milhões de euros, a serem encarados não numa perspetiva de revenda futura mas de poder ter o jogador por muito mais tempo. E diz Rui Costa que está convencido de que vai ter custos com o jogador, o que implica que ele venha a contribuir para o sucesso do coletivo. Mas é nesta questão que esbarram os sonhos de regresso de João Félix. E é tanto por isso como pelo facto de ele ainda ser demasiado caro para a realidade nacional que estou convencido de que ele não se concretizará. Apesar de tudo, antes de voltar, Renato teve de descer muito mais na hierarquia do futebol mundial.
Excelente análise a esta possível grande contratação encarnada 👌