O direito, o dever e o bem comum
O futebol português está cheio de situações em que direitos, deveres e bem comum não andam a par. Vejamos alguns, do Belenenses ao processo ao Portimonense, ao caso Palhinha e ao jogo da Covid19.
O Belenenses viu anteontem confirmada em segunda instância, no Tribunal da Relação, uma decisão do Tribunal da Comarca de Lisboa, que lhe dá direito a formar uma SAD ou uma SDUQ, que é a única forma legal de competir nas divisões profissionais do futebol português. Esta questão coloca-se – e convém lembrá-lo aos que andam mais distraídos – porque há uns anos o clube vendeu a maioria do capital da sua SAD, então a competir na I Liga, a um investidor externo, a Codecity, mas depois as duas partes entraram em litígio, o clube separou-se da sua própria SAD, vendeu os dez por cento que ainda mantinha (tudo explicado aqui) e preferiu recomeçar o trajeto pelos distritais, estando neste momento em boa posição para subir à Liga 3, a dois patamares da sua “nemesis”, que ainda luta para não descer da I Liga. Este caso, tal como o do recente FC Porto-Portimonense, o do já não tão recente Belenenses SAD-Benfica ou a ainda menos recente suspensão a Palhinha – e sim, tive o cuidado de citar um por cada clube grande... – é um exemplo perfeito dos limites do direito, da noção do dever e do que deviam ser as prioridades em função do bem comum.
O que o Tribunal da Relação veio agora estipular foi que não há nenhuma razão para que o centenário clube de Belém fique preso a um negócio do qual se arrependeu. A direção do Belenenses fez asneira – ou pelo menos entendeu que tinha feito asneira – ao ligar-se ao tal investidor, em busca de um futuro mais radioso, e assumiu as culpas, iniciando o caminho das pedras pelos campeonatos distritais. Errou e pagou por isso. Agora que já vê a luz ao fundo do túnel, tem todo o direito a refazer a vida, provavelmente tendo aprendido uma lição com o caso: “não percas o controlo da maioria do capital da SAD que vieres a formar”. O problema é que do outro lado também há direitos. Rui Pedro Soares, o empresário que comprou a SAD do Belenenses, sabe o que comprou e, por muito que os mais acirrados adeptos azuis queiram impedi-lo pela arruaça, ainda aguarda decisão judicial definitiva acerca do direito a chamar à sua equipa “Belenenses SAD”. Mudou o emblema, mudou a sede e o local de treinos e jogos, mas ainda surge na informação oficial da Liga Portugal, por exemplo, como “Belenenses SAD” e não como “B-SAD”, que é como do Restelo exigem que lhe chame. E é aqui que entram as noções complementares ao direito. Ou deviam entrar.
Uma coisa é o direito a fazer algo. Outra, acima, deveria ser o dever. E este deve ser definido em função do bem comum. Tanto o Belenenses centenário como o Belenenses da Codecity têm direitos, mas acima desses direitos ambos têm um dever: clarificar as coisas, de forma a dignificar uma área de atividade – o futebol – que não ganha nada com estas confusões. O Belenenses-clube já expiou os seus pecados e é em nome do bem comum, da dignificação de uma área de atividade e negócio na qual ambos estão inseridos, que a Belenenses-SAD devia agora cumprir também a sua penitência, assumindo de vez a separação. Tem direito a usar o nome que “comprou”? Até hoje ainda ninguém lhe disse o contrário. Mas é inteligente que o faça? Creio que não, que tem mais a ganhar no longo prazo com a busca de uma identidade que lhe permita crescer, enraizar-se e ganhar adeptos que sejam seus – coisa que enquanto persistir nesta guerra não tem nem terá. Hoje já ninguém se lembra que o Atlético nasceu da fusão da União de Lisboa e do Carcavelinhos ou que o Oriental resultou da união de esforços do Chelas FC, do Marvilense e do Fósforos.
No fundo, o direito deve fornecer-nos linhas orientadoras, mas numa sociedade saudável a responsabilidade do dever e o senso comum estarão sempre acima. E isso viu-se bem no caso do FC Porto-Portimonense e do inacreditável processo aos algarvios por causa das opções de Paulo Sérgio. O treinador da equipa algarvia já estava privado de vários titulares e optou por poupar uns quantos mais, para ter a certeza de que contaria com eles no jogo seguinte, o aparentemente mais decisivo desafio com o Moreirense, rival na luta pela fuga à despromoção (escrevi sobre o tema logo na altura, aqui). Tinha todo o direito a fazê-lo. Era o que faltava, serem os adeptos – ainda por cima os dos clubes adversários – a estipular que jogadores um treinador leva a um jogo. É por isso que o processo disciplinar ao Portimonense é algo do mais estapafúrdio que vi nos últimos anos no futebol português. A esse nível de tacanhez só encontro mesmo as tentativas de justificar a opção do treinador para lá do “fez aquilo que entendeu”, com estudos estatísticos acerca das alterações que cada técnico operou antes de cada jogo. Como se a discricionariedade da escolha fosse mensurável.
A questão é que o facto de um treinador ter o direito a fazer algo não quer dizer que, fazendo-o, esteja a cumprir o seu dever. E Paulo Sérgio até pode apontar para os três pontos que veio a ganhar no jogo seguinte, o tal desafio face ao Moreirense, para alegar que fez o que devia, mas não protegeu o bem comum, a imagem de uma Liga que se quer competitiva para obter, por exemplo, mais receitas de televisão. No fundo, fez o mesmo que a própria Liga antes do jogo entre a Belenenses SAD e o Benfica, que a equipa da Codecity abordou com apenas nove jogadores, dois dos quais guarda-redes, porque estava afetada por um surto de Covid19 (e também escrevi sobre o tema aqui). O jogo devia ter ido avante? Sim, os regulamentos – o direito, portanto – diziam que se jogava enquanto as duas equipas tivessem pelo menos sete jogadores. E assim se fez, até que, com 0-7 ao intervalo, os jogadores azuis decidiram pôr fim à farsa, começando a cair lesionados e levando a equipa a ficar aquém do limite mínimo. Mas outra coisa é perguntarmos se o facto de o jogo ter ido avante defendeu o bem comum? E aí já é claro que não, porque o que saiu dali foi uma farsa, uma vergonha que tira interesse a uma competição que precisa da atenção positiva para captar receita vinda de bilheteira, das TV e dos patrocinadores.
E podíamos continuar por aí a fora, alargando a análise, por exemplo, ao caso Palhinha. Antes de um Sporting-Benfica, o jogador viu injustamente um cartão amarelo, no Bessa, que era o quinto de uma série e por isso o afastava do dérbi. O próprio árbitro reconheceu o erro, mas a “doutrina de campo de jogo” impedia o Conselho de Disciplina de o despenalizar, pelo que Palhinha ia mesmo ficar fora de jogo. O Sporting, porém, recorreu para o Tribunal Arbitral do Desporto – que depois veio, como é evidente, a declarar-se incompetente para julgar o caso – e, de caminho, conseguiu que fosse admitida no Tribunal Administrativo do Sul uma providência cautelar que suspendia a própria suspensão. Lá está: o clube foi pela via legal, usou o direito – ou uma “chico-espertice” acolhida pelo direito – e pôde ter o jogador no dérbi. Mas defendeu o bem-comum? Não. E é ver como hoje em dia ninguém cumpre castigos a não ser quando dá jeito, porque as providências cautelares se tornaram hábito, ajudando a retirar ainda mais credibilidade aos órgãos disciplinares e à competição em si.
No fundo, andamos todos muito confundidos. Confundimos o que é legal com o que é bom. E os conceitos nem sempre andam a par.
O que faz falta ao futebol português, sobretudo à classe dirigente, é bom senso. É adequar as regras ao bom senso. Um jogador leva amarelo injustamente, o árbitro admite, todos o comprovam, mas o amarelo não pode ser tirado porque não é possível. É um acéfalo cumprimento das regras, que se verificou também na realização do Benfica-B SAD. Se toda a gente sabia que não havia condições para um jogo digno desse nome, por que raio se insistiu e levou-se por diante aquela, digamos assim, coisa? Haja alguém com poder para implantar bom senso. Que também andou arredado da suposta investigação ao Paulo Sérgio. Já o escrevi aqui: foi um simulacro de jogo, o Portimonense fez uma exibição patética, mas era o que faltava virem forças externas dizer quais os jogadores que um treinador deve escolher. Não eram elegíveis para o jogo? A atitude de Paulo Sérgio, e por muito que ele tente justificar com um jogo alegadamente decisivo com o Moreirense (nunca foi), é passível de críticas. Muitas. Mas daí a ser aberto um inquérito... Até porque, se fossem abertos inquéritos a todos os jogos maus deste campeonato tínhamos de importar investigadores e nem em 3025 haveria conclusões.
A meu ver faltam figura consensual que se dedique a organizar tanto a nível de conceito como a nível legislativo. Um exemplo de figuras: Ramalho Eanes ou Marcelo Rebelo de Sousa. Mas no futebol não temos essas figuras. Temos as figuras de clubes que as rivalidades impedem avançar para um futebol português que a gente sonho mas no fundo não quer.