O dia da revolução
O primeiro lugar garantido pode abrir espaço a uma revolução no onze de Martínez no jogo de hoje, contra a Croácia. Mas nem os onzes têm sido tão cristalizados nem a revolução serve à seleção.

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Portugal já garantiu o primeiro lugar do seu grupo da Liga das Nações e pode dar-se ao luxo de apresentar hoje (19h45, RTP1), contra a Croácia, em Split, uma equipa alternativa, cheia de opções vistas por Roberto Martínez como secundárias. Bruno Fernandes, que de qualquer modo já estaria fora, por ter visto um amarelo castigador contra a Polónia, Bernardo Silva, Pedro Neto e Cristiano Ronaldo foram até dispensados da viagem, mas não só é provável como é até recomendável que o selecionador não vá muito além deles quando pensar em alterações – até para que aqueles que vão entrar não sejam injustamente julgados pelo rendimento que apresentarem, se o fizerem inseridos numa equipa demasiado descaraterizada. Aquilo que a seleção mostrou nos 5-1 à Polónia, na sexta-feira, com uma primeira parte péssima seguida de um segundo tempo de bom nível, foi que mais do que dos nomes, o rendimento depende do foco que eles apresentam. E esse é o grande risco do jogo de hoje.
O facto de o primeiro lugar já não poder fugir à seleção nacional, garantindo que escapamos à Alemanha, à Espanha e à França no sorteio dos quartos-de-final, pode contribuir para algum desfoque. A última coisa que o selecionador nacional quererá é que as suas escolhas venham fazer crescer esse potencial de desconcentração, o que acontecerá se fizer tantas mudanças que nos lembre a todos – e de caminho aos jogadores – que o desafio não conta para grande coisa. A Liga das Nações é uma prova peculiar, porque tem sempre jornadas duplas separadas por apenas 72 horas, a fazer crescer a necessidade de rotação. Até aqui, aquilo que vimos de Portugal foram sempre exibições mais bem conseguidas no primeiro do que no segundo jogo de cada ronda. Em Setembro, a equipa assinou um período inicial bom contra a Croácia, a abrir, mas esteve depois desinspirada contra a Escócia – jogo para o qual Martínez fez quatro mudanças no onze. Em Outubro, Portugal fez uma belíssima exibição na visita à Polónia, em Varsóvia, e mostrou depois a sua pior cara na Escócia, perdendo com seis alterações ao onze os dois pontos que lhe roubam o pleno na tabela. Muitas das mudanças terão sido estratégicas – Martínez quis sempre ter dois centrais e um “seis” mais físicos contra os escoceses, por exemplo – mas é inevitável que se veja nas quebras de rendimento o efeito desmobilizador das trocas feitas após as vitórias de arranque.
É aqui que as pessoas se lembram de duas daquelas verdades que são universais no futebol. Uma é a de que Portugal tem neste momento jogadores de categoria em número suficiente para poder rodar e de que é preciso dar oportunidades aos que jogam menos vezes. A outra é a de que representar a seleção é sempre razão para que a motivação esteja em alta e que isso do desfoque não devia existir. Mas essas são verdades que perdem de vista aquilo que é o contexto de jogadores em cima dos quais há uma pressão competitiva constante, nos clubes, e para quem um ligeiríssimo afrouxar da válvula serve imediatamente como uma espécie de convite subsconsciente ao relaxamento, à perda daqueles dez por cento extra que fazem toda a diferença entre uma boa e uma má exibição. Da primeira para a segunda parte do jogo com a Polónia, no Dragão, Martínez só mudou João Neves por Vitinha. Terá alterado igualmente um par de definições estratégicas, como a altura do bloco e as zonas de pressão – Pedro Neto passou a atrasar o momento de baixar para formar linha de cinco, por exemplo –, mas o que mais se viu de diferente foi a prontidão, a rapidez de reação, as mudanças de velocidade com e sem bola. E isso vem da concentração competitiva, que foi radicalmente diferente entre a primeira e a segunda parte. Ora é precisamente para evitar a queda abrupta dos níveis desta concentração competitiva que não são recomendadas mais de quatro ou cinco mudanças do primeiro para o segundo compromisso de cada ciclo de jogos.
Chega, agora, a altura de me lançarem a segunda contestação: então passas a vida a dizer que Martínez é conservador, que muda pouco, e agora queres aconselhá-lo a ser timorato nas mudanças? Martínez não muda pouco os onzes. Nos cinco jogos desta Liga das Nações usou 20 titulares diferentes. Diogo Costa, Nuno Mendes e Bruno Fernandes foram os únicos a jogar de início nas cinco partidas. Onde ele resiste à mudança é no estabelecimento do plantel, na escolha dos 25 ou 26 que chama para cada lote de dois jogos, aspeto no qual tem muito peso (para ele) a pertença ao grupo. Se usou 20 titulares em cinco jogos, só meteu na ficha de jogo um total de 31 jogadores (23+8) nas mesmas cinco partidas. E, desses 31, seis nem jogaram, enquanto que outros quatro o fizeram por um total abaixo dos 15 minutos – Otávio e Pedro Gonçalves, então, só estiveram uma vez nos descontos. Aqui, como tentei explicar no Último Passe de sexta-feira passada, há maneiras diferentes de ver a coisa – e a de Roberto Martínez passa muito pelo estabelecimento de um grupo ao qual a simples pertença já vale créditos. Isso viu-se, por exemplo, na maneira com que o selecionador geriu o tema dos defesas-centrais, colocando António Silva, que já está no grupo há muito tempo, tem com ele unidades de treino suficientes para conhecer os seus princípios táticos, à frente de Tomás Araújo, que no Benfica relegou o colega de seleção para o banco. Tem razão? Aqui não se trata de ter ou não razão, são apenas maneiras de ver o tema, que podemos achar mais ou menos justas, mas que depois, bem vistas as coisas, não levam a diferenças abismais de rendimento da equipa. Mais uma vez, é o jogo de sexta-feira a dizê-lo: Portugal jogou com uma dupla de centrais sem rotina, que tanto António Silva como Renato Veiga têm sido sobretudo suplentes nos seus clubes – e Veiga quando joga é como defesa-esquerdo – mas nunca foi por eles que a equipa vacilou.
É por isso que o grande desafio do jogo de hoje, na Croácia, não é o de se verem jogadores novos na equipa. É o de criar o enquadramento ideal para que eles possam render. E isso, por muito contraditório que possa parecer, passa muito por limitar o total de jogadores a quem serão dadas oportunidades. Ninguém quererá uma chance numa equipa tão descaraterizada que depois não tenha condições para absorver as novidades que nela são testadas.