O destino numa bola saltitona
A diferença entre um título e o desperdício de uma vitória não está só numa bola que para de saltitar quando é preciso. Conceição chegou a Milão no momento certo, mas sabe que o futuro começa agora.

Palavras: 1253. Tempo de leitura: 6 minutos (áudio no meu Telegram).
Há tanta coisa pendente de uma bola que saltita que dela pode depender um jogo de milhões. No domingo, em Anfield Road, com 2-2 no marcador, já nas compensações, Zirkzee fez bem a diagonal para receber um passe de Bruno Fernandes, nas costas de Robertson e em direção à linha de fundo. O neerlandês teve tempo de levantar a cabeça e ver Maguire a chegar, mas em vez de lhe colocar a bola limpinha à frente, fez-lhe um passe saltitão, levando o central a bater por cima da barra o que devia ter sido o golo da vitória do Manchester United sobre o Liverpool FC. Ontem, em Riad, com 2-2 no marcador, já nas compensações, Rafael Leão fez também bem a diagonal para receber atrás de Frattesi e, com muito menos espaço livre, só tinha uma maneira de evitar o carrinho de Yan Bisseck e a mancha de Sommer, que era fazer a bola saltar-lhes por cima a caminho da chegada de Abraham. A diferença é que a bola lhe obedeceu e, depois desse primeiro salto, resvalou redondinha e rasteira para a frente do pé direito do inglês, que a empurrou para a baliza deserta de maneira a dar o primeiro troféu ao Milan de Sérgio Conceição. O Milan ganhou a Supertaça italiana com uma épica reviravolta (de 0-2 para 3-2) no dérbi contra o Inter, mas no feito houve mais do que uma bola que parou de saltar na altura certa. Houve trabalho mental do treinador e, acima de tudo, uma equipa ainda a tempo de ser salva – que é o que já falta em Manchester.
O que mudou de uma situação para a outra não foi só a qualidade técnica dos executantes, o facto de Leão ter conseguido que a bola lhe obedecesse e Zirkzee não ter sido capaz de lhe domar a rebeldia. Não terá sido sequer – embora esse possa ser um fator a considerar – por causa da qualidade do relvado do Estádio Rei Saud, por comparação com o piso irregular que há-de ter sobrado depois de de cima dele ter sido retirada tanta neve como aconteceu antes do jogo de Liverpool. A entrada de Sérgio Conceição no Milan foi ainda mais impactante do que a que sobre ele fez inadvertidamente o lateral brasileiro Emerson Royal nos festejos do golo de Abraham, que o próprio descreveu, a brincar e antes de acender o tradicional charuto com que dança no balneário após os troféus, como “para cartão vermelho”. Conceição chegou a Milão na segunda-feira passada, foi apresentado na terça como sucessor de Paulo Fonseca e seguiu com a equipa para Riade nesse mesmo dia. A passagem de ano foi entre a febre que lhe causou uma gripe, a preparação de treinos, a sua realização, o visionamento dos jogos feitos pelos Rossoneri nesta época e, o mais importante, o contacto com os jogadores. É evidente que com menos de uma semana de trabalho – e ainda por cima com dois jogos pelo meio – não poderia haver grande influência do treinador no futebol da equipa. Conceição não ensinou nada àqueles jogadores: os onze que acabaram a partida de ontem somavam, entre eles, 50 troféus, dos quais 15 eram títulos de campeão nacional em todas as Big Five. Mas houve, aí sim, um impacto imediato no fazer-lhes crer que era possível voltarem a ganhar, depois de terem deixado adormecer a ambição. Como destacou Arrigo Sacchi, o histórico treinador campeão europeu no Milan, na opinião dada à Gazzetta dello Sport de hoje, “mal chegou, ele soube tocar nas cordas certas”.
E depois há outra questão, também apontada por Sacchi, que são as duas reviravoltas. Tal como no jogo com a Juventus, o Milan falhou a abordagem de entrada, viu-se a perder, mas virou. Na meia-final de 0-1 para 2-1, na final de 0-2 para 3-2, contra uma equipa do Inter que, desde o início de Novembro e daquele escaldante 4-4 contra a Juventus, só tinha sofrido três golos em 13 jogos. “Quem percebe de futebol viu a sua competência tática e estratégica. Tem ideias fortes e claras e, com substituições ofensivas, deu coragem a toda a equipa”, destacou ainda Sacchi, que viu no Milan “uma equipa que luta, que não cede um centímetro, que faz pressão, que quer chegar depressa à bola”. O Milan não vai ser campeão de Itália, que já segue a 17 pontos do SSC Nápoles – ainda que com dois jogos a menos – e a 13 do Inter – neste caso com o mesmo total de partidas. Mas tem tudo para acabar a fase regular da Champions nos oito primeiros, diretamente apurado para os oitavos-de-final, pois está a um ponto do oitavo lugar e acaba com Girona FC em casa e Dínamo Zagreb fora, dois jogos de ganhar. E tem ainda uma equipa cujos integrantes sabem o que é vencer a um certo nível. As grandes batalhas do novo treinador serão a preparação dos jogos que se seguirem na fase a eliminar da Liga dos Campeões – e aí, ante adversários mais fortes, se verá a sua dimensão estratégica – e, mais ainda, a cadência normal de partidas da Serie A, em que o grau motivacional não será idêntico ao que foi contra a Juventus e o Inter. Ou ao que, bem mais a Norte, em Manchester, Ruben Amorim viu contra o Manchester City ou o Liverpool FC mas não consegue instigar em jogos menos mediáticos.
“É preciso começar já a pensar no Cagliari”, alertou Conceição na conferência de imprensa de ontem, antecipando o regresso ao campeonato, no sábado, em San Siro, contra uma equipa que está imediatamente acima da linha de água mas que se encontra quase tão perto do Milan (a dez pontos) como o Milan está da zona Champions (a oito). Porque uma coisa é ganhar um par de grandes jogos e outra, bem diferente, é tornar uma equipa pouco exigente consigo mesma numa vencedora em série. “Uma noite como esta deve dar-nos a vontade de viver outras”, disse ainda Conceição. O trabalho vai mudar e vai passar a depender mais da consistência do que de um assomo de testosterona, de um bater no peito afirmativo, do discurso motivador. Foi interessante ler as palavras de Zlatan Ibrahimovic, que é representante do acionista norte-americano junto da equipa, quando estabeleceu as diferenças entre Sérgio Conceição e Paulo Fonseca, o seu antecessor no cargo, caraterizando este como mais dialogante e aquele como um ‘duro’. “Agora vou poder dar um passo atrás. A partir daqui poderei dar mais abraços, que o treinador usa o pau”, disse. É curioso como dentro do clube se anseia já pelo Sérgio-mau, como o é que essa seja a parte do treinador que não deixa saudades em Portugal a não ser nos seus ex-jogadores – e Pepe, por exemplo, foi um dos que ontem partilhou no Instagram o post da Serie A, com uma montagem em que Sérgio Conceição aparece sentado num cadeirão em pose triunfal. O “Sérgio mau” é, regra geral, justo para dentro e pouco esclarecido para fora. E, depois de ter ganho com mérito inquestionável as primeiras batalhas, muito graças ao poder da mente, é agora ele que encara o verdadeiro desafio. Com tudo para ganhar, mas por vezes a uma bola saltitona de o perder.
Dúvidas sobre o Substack:
O que é o Substack?
O Substack é uma plataforma híbrida de envio de newsletters e artigos por Mail a quem optar por subscrever que providencia ao mesmo tempo uma ‘landing page’ aos autores, como se de um site se tratasse, permitindo assim também a leitura, ‘via browser’, a quem não é subscritor. Do ponto de vista do criador de conteúdos, o Substack tem duas enormes vantagens. Primeiro, ao garantir a entrega dos artigos a quem subscrever, faz-nos depender menos dos algoritmos das redes sociais, que há anos passaram a esconder posts com links que enviem o utilizador para fora dessas mesmas redes. Depois, permite a cobrança de assinaturas Premium, tornando a nossa atividade menos dependente de receitas de publicidade que crescem com a viralização, levando na maior parte das vezes a busca do clique a penalizar os conteúdos.
A conselho de um amigo, o Último Passe passa, a partir de hoje, a conter a resposta a uma dúvida que possa surgir-vos acerca da minha atividade. No final, todas estas perguntas e respostas serão compiladas num FAQ que vai ficar disponível no meu Substack.