O desporto contra Putin
O que deve fazer a comunidade desportiva internacional face à agressão russa? Precisamente o contrário do que tem feito até aqui, que tem sido legitimar a ambição sem limites de Putin.
A invasão da Ucrânia por tropas russas, que não se coibiram de bombardear alvos muito longe da discutida região do Dombas, como a capital, Kiev, terá inevitavelmente de marcar o fim de um período em que o desporto mundial se curvou perante o apetite expansionista de Vladimir Putin e, sobretudo, face aos biliões de euros dos oligarcas nascidos sob o manto protetor do seu antecessor, Boris Yeltsin. Não podemos continuar a tolerar elefantes na sala, como foi a presença dos atletas russos nos últimos Jogos Olímpicos debaixo da bandeira do seu Comité e não do país, condenado por doping de Estado, pois escapatórias como essa alimentam o problema e geram em Putin uma sensação de impunidade total, que contribui sempre para mais violações.
Até aqui, a via do desporto com a Rússia tem sido sempre a do apaziguamento. Foi assim em 2008, depois da guerra que levou os russos a apoiar os rebeldes separatistas da Ossétia do Sul e da Abecázia, desafiando as intenções georgianas de retomar a soberania sobre as duas repúblicas, que faziam parte do seu território. Nos Jogos Olímpicos que se seguiram, Putin foi recebido em Pequim com honra de passadeira vermelha. Voltou a ser assim em 2014, quando a Rússia anexou a península da Crimeia, agindo também em nome de grupos de separatistas pró-russos, insatisfeitos com o facto de os antepassados terem ido ali parar no seguimento de políticas estalinistas de repovoamento e de agora viverem em território sob administração ucraniana. Meses depois, a Rússia estava a organizar os Jogos Olímpicos de Inverno, em Sochi. Está a ser assim agora com a zona do Dombas, como será assim também com a Pridnestróvia, a região moldava de onde chegou, por exemplo, o Sheriff Tiraspol, que ontem jogou em Braga, para a Liga Europa, também ela demograficamente russa. Tudo isto o Mundo do desporto tem vindo a tolerar, chegando-se ao ponto de se realizar um Mundial de futebol na Rússia, em 2018.
O Mundo ocidental divide-se neste momento entre os que querem envolver-se militarmente no apoio à nação invadida, a Ucrânia, e os que defendem o caminho das sanções puramente económicas e diplomáticas. Mas o primeiro sinal de fraqueza já foi dado ontem pelo governo britânico, quando Boris Johnson anunciou uma vasta lista de oligarcas e empresas russas cujos bens no Reino Unido iriam ser congelados, mas nessa lista não constava o proprietário do Chelsea, Roman Abramovich, que cresceu com Yeltsin mas é muito próximo de Putin e do Kremlin. A UEFA deve anunciar hoje que a final da Liga dos Campeões será retirada a São Petersburgo, para onde estava marcada, restando saber como vai agir face à possibilidade de o Spartak Moscovo continuar em prova na Liga Europa, à recusa de Polónia, Chéquia e Suécia defrontarem os russos no playoff de apuramento para o Mundial do Catar ou à presença da seleção feminina da Rússia no Europeu de futebol que vai jogar-se em Julho em Inglaterra. Tudo eliminado? É possível que venha a ser esse o desfecho, o que seria um ato de coragem e um sinal que o futebol internacional não dá desde o afastamento da Jugoslávia do Europeu de 1992 – e que no Europeu feminino poderia levar Portugal a ser a Dinamarca dos dias de hoje...
Essas, no entanto, são as decisões, por assim dizer, “fáceis”, enquadráveis apenas no âmbito de relações diplomáticas que vão agravar-se por si só, deixando as autoridades desportivas à vontade para seguir o caminho. Muito mais problemáticas são outras decisões. O que fazer com o patrocínio da Gazprom à Liga dos Campeões? O Schalke já abdicou dele, como o fez o Manchester United com a sponsorização da Aeroflot, mas se os alemães estão atualmente na segunda divisão e podem dar-se a esses luxos, no caso dos ingleses a companhia aérea russa era um patrocinador secundário, levando a que os ganhos em relações públicas sejam sempre maiores do que as perdas financeiras. Mais grave ainda: o que fazer com o dinheiro que Roman Abramovich tem no Chelsea? – e são quase 1800 milhões de euros de dívida do clube ao seu dono, de acordo com as últimas contas reveladas. O que fazer com o dinheiro que Rybolovlev tem no AS Mónaco? Ou, se quisermos sair do âmbito do futebol, o que fazer com o Grande Prémio da Rússia de Fórmula 1, onde Vettel e Verstappen já disseram que não vão? O que fazer com o patrocínio da russa Uralkali à Haas, a equipa de Fórmula 1 que tem a pilotar Nikita Mazepin, filho do patrocinador? O que fazer de Daniil Medvedev, o tenista russo que ascenderá na próxima segunda-feira ao número um do ranking mundial, sucedendo a Novak Djokovic?
É evidente que o desporto mundial tem de cortar laços já com uma nação agressora como é a Rússia. E se é possível defender a ideia de que assim estarão a pagar os justos pelo pecador, também se se sabe que se há coisa de que Putin gosta é de ver a bandeira russa acima das outras, proclamando a superioridade da nação nos palcos do desporto internacional. Todos os ditadores de cariz nacionalista pensaram assim – e foi por isso que Mussolini quis organizar o Mundial de 1934, que a junta de Videla quis o Mundial de 1978, que Hitler recebeu os Jogos Olímpicos de 1936, ou que Brezhnev quis ter os de 1980. A Putin, o desporto mundial tem o dever de tirar essa gratificação.
Caro António Tadeia,
Parabéns por esta crónica.
Todas as crónicas são bastante equilibradas, com a devida isenção e bem escritas, mas esta destaco pelo momento vivido e pelo seu conteúdo.
Um abraço com elevada estima,
António Vale
Fotojornalista desportivo
Excelente Texto. Continuação de um Extraordinário Trabalho