O clássico tira-teimas
As regras financeiras da Liga impuseram diferenças nas formas de Real Madrid e, sobretudo, FC Barcelona gerirem os plantéis. O clássico vale a liderança e a vitória de uma filosofia.
Palavras: 1170. Tempo de leitura: 6 minutos (áudio no meu Telegram).
O hat-trick de Vinicius Júnior ao Borussia Dortmund abriu as hostilidades, ainda por cima uma semana antes de ser conhecido o vencedor da Bola de Ouro relativa a 2023/24. Já não conta para nada, que os votos foram todos entregues e o período em apreço terminava em Julho, mas houve logo quem visse uma espécie de prenúncio na forma como o jovem brasileiro impulsionou o Real Madrid para uma virada, de 0-2 para 5-2, na reedição da última final da Champions. Só que, um dia depois, foi a vez de o grupo de adolescentes que forma a equipa do FC Barcelona responder à altura, vingando os 2-8 da pandemia e ganhando por 4-1 ao Bayern Munique no Olímpico de Montjuic. É em grande momento que tanto os madridistas como os blaugrana entrarão em mais uma edição do clássico que para toda a Espanha, um Real Madrid-FC Barcelona que terá nos bastidores o confronto entre duas maneiras de fazer as coisas: a acumulação sistemática de estrelas desbloqueadoras ou a vitória silenciosa da “cantera”.
O jogo, agendado para as 20h de amanhã (DAZN1), é marcado pelo arranque de temporada imponente – e inesperado, diga-se – dos catalães. O Barça de Hansi Flick já perdeu dois jogos esta época – o 2-1 no Mónaco, na Champions, a jogar com dez durante 80 minutos, e o telúrico 4-2 em Pamplona, contra o Osasuna, na Liga espanhola –, mas segue isolado no primeiro lugar, mesmo tendo voltado a ser muito penalizado pelas regras financeiras impostas pelo regulador. Limitado nas inscrições à conta das irresponsabilidades que foi acumulando na gestão, o Barça olhou para dentro e encontrou talento trabalhado à moda da casa. Como disse já Hansi Flick, o treinador chamado esta época para substituir Xavi Hernández, aparentemente porque a aposta deste no talento da casa foi julgada insuficiente, “é preciso ter em campo quem conheça de cor a maneira de jogar à Barcelona”. Sete dos onze titulares nos 4-1 ao Bayern foram formados em La Masía: o guarda-redes Peña, que foi primeira escolha depois de uma lesão grave de Ter Stegen, apesar do regresso da reforma de Szczesny, mas também os jovens Cubarsí (17 anos), Baldé (21), Pedri (21), Casadó (21), Fermín López (21) e Yamal (17). Como se não bastasse a entrega das rédeas da equipa, a posição de Busquets, a um jovem inexperiente como é Casadó (cinco jogos e 58 minutos pela equipa principal nas duas épocas anteriores), do banco saltaram ainda mais quatro “putos da casa”: Dani Olmo, que voltou depois de fazer sucesso no estrangeiro, mas também Ansu Fati, Pau Victor e Gavi. A aposta cega na forma de fazer as coisas nas categorias de base tem sido o maior mérito do treinador alemão, que nos tais 8-2 do Estádio da Luz, naquela Liga dos Campeões do ano de pandemia, estava do outro lado da barricada.
Esta não tem, porém, de ser vista como a única forma de garantir sucesso. Em Madrid, o Real de Florentino Pérez deixou de apontar a todos os Galácticos que aparecem no mercado, como fazia quando o presidente era mais jovem e incontrolável, mas ainda faz gala em utilizar o talento conciliador de Carlo Ancelotti para juntar um cromo novo à caderneta em cada Verão. Este ano foi Mbappé, cuja imposição após a chegada de Paris não está a ser tão rápida como se esperaria, porque os que já lá estavam não abdicam com tanta facilidade do destaque que já tinham garantido. Contra o Borussia, Vinicius fez três golos, Bellingham juntou uma assistência, Rodrygo e Modric não perderam influência – ainda que tenham saído aos 2-2, com a virada a meio-caminho. Do banco ainda saltaram Camavinga, Tchouameni e Güler, este só para os descontos. A contratação de Mbappé parece estar a ser um desafio maior do que qualquer um já superado pelo veterano técnico italiano, porque não há-de ser fácil encontrar uma maneira equilibrada de o colocar em campo com Vinicius, Rodrygo e Bellingham, mas mesmo assim os merengues só perderam uma vez esta época – o 1-0 em Lille, curiosamente com Rodrygo no banco e Mbappé a saltar de lá só para a última meia-hora, em substituição de mais um aspirante a estrela galáctica, o jovem brasileiro Endrick. Os empates iniciais na Liga, em Maiorca e Las Palmas, numa altura em que o Barça disparava na frente, chegaram a causar alguma comoção, mas a verdade é que a equipa madrilena vai enfrentar o clássico com a certeza de que se o ganhar alcança os rivais no topo da tabela e de que pode vir a fazer valer a sua cosmovisão futebolística.
No fundo, ainda que possamos achar – e eu acho – que o Barça não acredita assim tanto no que está a fazer, que se pudesse e a Liga de Tebas o deixasse faria diferente e que para ali foi empurrado pelas circunstâncias, pela incapacidade de inscrever jogadores pagos acima do que são os seus limites orçamentais autorizados, o que estará em causa no clássico de amanhã são duas maneiras diferentes de fazer as coisas. De um lado, a submissão de uma ideia coletiva de jogo à qualidade individual, a uma ideia de gestão montada à volta da contratação cirúrgica de (pelo menos) uma nova vedeta a cada ano e da capacidade que ela tem para, através do talento futebolístico domado por uma velha raposa e da geração de receita de marketing, vir a criar condições para a entrada da vedeta que se segue e para a repetição eterna do ciclo. Se o Mundo está cada vez mais individualista, se o sucesso global está cada vez mais virado para a figura e se mede em milhões de seguidores, essa é uma forma adequada de viver. Do outro lado, foi a falência da política de mercado a levar um clube a reencontrar a sua essência, por mais desenquadrada que ela possa parecer no futebol-indústria dos dias de hoje. Afinal de contas, até o irmão de Mbappé tem quatro vezes mais seguidores no Instagram do que Marc Casadó, o patrão do meio-campo do Barça. Aliás, até a irmã de Cristiano Ronaldo o supera – e para isso nem precisou de dar um chuto numa bola.
No campo, esperarei sempre que ganhe o melhor, seja ele qual for. Não tenho nada contra as grandes estrelas que são capazes de nos surpreender a cada manifestação de classe e admiro-as da mesma maneira. Mas é a possibilidade de que o melhor seja uma equipa montada em torno de meia-dúzia de miúdos capazes de dominar uma maneira coletiva de fazer as coisas e não um acumulado de estrelas que olham primeiro para o efeito que cada lance terá na sua comunidade de seguidores, na sua “star quality” enquanto influencers, que faz deste jogo que é o futebol uma coisa maravilhosa.