O caminho de Schmidt
Já é oficial o "princípio de acordo" entre o Benfica e Roger Schmidt. Agora, é responder a três perguntas e deixar outras duas responderem-se a si mesmas. Ou continuar a fazer tudo da mesma forma.
O Benfica oficializou ontem um “princípio de acordo” com Roger Schmidt para ser o treinador da equipa principal do clube em 2022/23 e o facto veio dar novo alento aos vendedores de sonhos, que imediatamente descobriram duas mãos-cheias de jogadores que podem vir para a Luz com o treinador alemão. Começa mal a história, porque se na cabeça de muitos adeptos a melhoria da equipa passará pela ilusão criada pela chegada de muitos reforços – mais uma vez... –, na realidade o trabalho mais importante de Schmidt vai ser o de pegar nas dezenas de jogadores que têm contrato com o clube e ver quais não servem a sua ideia, dispensando-os, de forma a criar um grupo curto, unido e homogéneo, no qual possa encaixar um ou dois upgrades reais ao mesmo tempo que garante espaço de afirmação aos miúdos que acabam de ganhar a UEFA Youth League.
O Benfica tem uma equipa B que andou durante muito tempo à cabeça da classificação da II Liga (e sobre isso já escrevi aqui). Tem uma equipa de sub19 que foi campeã da Europa desta categoria. É contraproducente vir a ter mais de 23 jogadores no plantel, é prejudicial ceder a receios e atafulhar o balneário de mais e mais gente. Se Schmidt prefere o 4x2x3x1 para jogar, tem de ter dois guarda-redes – o terceiro é o da equipa B – quatro laterais, quatro centrais, quatro médios, quatro extremos e eventualmente cinco avançados, três mais dados a tarefas de ponta-de-lança e dois capazes de cumprir entre o ataque e o meio-campo. Ora só hoje já se fala nos jornais em Götze, Gutierrez, Al Musrati, Ricardo Horta, Neres, Ristic e Musa. É um terço do plantel. E podem até dizer-me que muito disto é conversa da comunicação social, mas a verdade é que o clube tem-se deixado aprisionar com frequência nesta vertigem de mercado: esta época contratou sete jogadores – Yaremchuk, Meité, Gil Dias, Randonjic, João Mário, Rodrigo Pinho e Lázaro –, dos quais só um (João Mário) tem pelo menos 50 por cento do tempo de jogo em campo. E mesmo esse já está em quebra nas opções de Nélson Veríssimo. Na temporada anterior tinham sido dez – Darwin, Everton, Waldschmidt, Pedrinho, Otamendi, Lucas Veríssimo, Gilberto, Todibo, Helton Leite e Vertonghen – ainda que com maior percentagem de acerto, pois quatro deles (Vertonghen, Otamendi, Everton e Darwin) cumpriram essa metade do tempo de jogo no relvado.
“Ah, isso era o Jorge Jesus que queria sempre mais e mais jogadores”, dizem os que gostam de varrer as questões para debaixo do tapete a ver se elas lá ficam. Pois bem, em 2019/20 o Benfica contratou sete jogadores – Weigl, De Tomás, Vinicius, Chiquinho, Cadiz, Caio Lucas e Dyego Souza. E um ano antes, em 2018/19, já tinham chegado mais nove: Gabriel, Castillo, Conti, Alfa Semedo, Corchia, Vlachodimos, Ferreyra, Lema e Ebuehi. Estes foram mais baratos? Sim, de certa forma. O Benfica passou de 91 milhões de euros gastos entre 2018/19 e 2019/20, para 130 milhões entre 2020/21 e 2021/22. Jesus agravou os gastos, sim senhor. Mas não foi ele que inventou esta forma de estar. Ela tem sido intrínseca àquilo que é o Benfica.
Parece-me evidente que a contratação de Roger Schmidt (que podem conhecer melhor neste texto) indica que o clube está predisposto a abraçar a ideia de jogo do treinador (e sobre isso escrevi aqui). E ela começa por pressupor um determinado tipo de jogadores: guarda-redes capaz de controlar a profundidade e de funcionar como ponto de apoio de circulação com bola, centrais fortes nos duelos, com boa capacidade de cobrir a profundidade e confortáveis com bola na construção, laterais disponíveis ofensivamente, médios seguros na posse e de grande rigor posicional, extremos velozes e com apetência pelo espaço interior e pela finalização e avançados capazes de pressionar sem bola e de a pedir tanto na profundidade ou na largura como no apoio entre linhas.
A primeira pergunta a fazer é: dos jogadores que o Benfica tem, tanto em casa como a jogar por empréstimo, quais servem este propósito? Há gente fora que parece assentar como uma luva – Florentino, Jota, eventualmente Ferro... A segunda é: aos que não servem, o que se lhes faz? E aqui aparece o primeiro entrave num clube habituado a vender em alta ou a manter em casa jogadores que não tenciona utilizar só para não desvalorizarem. Pois para a coisa ser bem feita, eles terão mesmo de partir, porque essa é a única forma de não ficarem a roubar espaço de progressão a quem está à espera de vez, nos B ou nos sub23. Só depois chega a terceira questão: que par de contratações “cirúrgicas” pode melhorar o conjunto? E isto pode ser bem difícil para um clube cujos adeptos estão habituados à vertigem noticiosa permanente, mas esta é a altura de lhes perguntar se acham que aqueles jogadores de quem se fala entrariam de caras no onze do Benfica. Não, pois não? Então têm aí a vossa resposta.
A quarta pergunta – que miúdos da formação podem entrar nas contas? – e a quinta – o que fazer para substituir gente que não se consegue segurar, como eventualmente Darwin ou Grimaldo? – não têm resposta. Ou pelo menos não a têm ainda. Só o tempo pode dizê-lo, porque só o tempo e a experimentação permitirão perceber quem é que, entre os jogadores que estão na linha de sucessão, se afirmará ou não. E sim, é preciso correr riscos, deixar que a terceira opção para cada posição seja sempre um desses miúdos.
A não ser que no Benfica se prefira pensar em mercado antes de se pensar na equipa e se façam já planos para gastar os milhões que se espera vir a receber por Darwin, contratando uma equipa nova, toda ela à imagem do novo treinador. Também é uma aproximação válida. Mas, se assim for, das duas uma: ou se assume a fartura e se mete boa parte do plantel atual no balde do lixo, porque nele há jogadores que não valorizaram – pelo contrário – com estes três anos sem ganhar nada e por isso não são “vendáveis”, ou se mantém a lógica dos plantéis de 30 jogadores, boa parte dos quais não contam para nada, e se rouba o espaço de afirmação aos miúdos.
Não dá uma certa ideia de que estamos perante aquilo que o escritor Nelson Rodrigues chamava de complexo vira-lata? Vejo vários comentários de que com Schmidt vem a revolução e que é preciso uma equipa praticamente nova para adaptar às ideias do treinador. Ora, quando o técnico é português fazem-se estas conjecturas? Dá-se este poder todo e cria-se a imagem de alguém que chega e preciso de um plantel novo para implementar as suas ideias? Sérgio Conceição é o melhor treinador do nosso campeonato e tem tido sucesso interno e internacional a trabalhar com aquilo que lhe dão e sem revoluções e um cheque em branco. Ruben Amorim teve também sucesso e também quando chegou não se falou em revolução.
Ainda temos o tal complexo de que falava Eça? O que vem de fora é visto sempre como melhor? Trés chic? Se o novo treinador fosse o Abel, como se chegou a falar, um Nelson Veríssimo ou um Carlos Carvalhal, também se falaria nesta revolução toda e nestes conceitos altamente avançados e que exigiriam plenos poderes aos treinadores?
No PSV fizeram essa revolução quando contrataram Roger Schmidt? Ele tem assim tão grandes resultados que justifiquem esta moral toda?
O Benfica vai ter que cortar com o passado recente de contratar camiões de jogadores no meio da pressão de começar a época mais cedo e com a possibilidade de falhar um dos objetivos logo de início. Tempo. Depois de construir um plantel adequado às ideias do treinador, é preciso dar tempo ao projeto e não inverter marcha ao primeiro contratempo. As notícias das carradas de jogadores que podem vir não auguram nada de bom. Porque o folclore dos inícios de época sobre as contratações e pseudo contratações também não é alheio ao próprio clube, que também procura lucrar com isso, seja para posterior vitimização, seja para dar uma ideia de pujança, seja para dar alento extra aos adeptos.