O Benfica e a representatividade
A “ameaça” de entrada de Luís Filipe Vieira na corrida eleitoral do Benfica abre o apetite para a votação mais representativa de sempre e permite um paralelo com a capacidade dos estados para mudar.

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As próximas eleições do Benfica têm tudo para poderem vir a ser objeto de estudo por parte de quem queira compreender a fusão entre política e desporto e os efeitos que cada uma das esferas tem na outra. Desde sempre um baluarte da democracia em Portugal, mesmo quando ela foi suprimida no país, o Benfica prepara-se para, em Outubro, colocar os seus sócios ante uma escolha surreal, por aparente excesso de representatividade – se é que isso pode suceder numa eleição. Por absurdo, é quase como se, no PREC, em vez de escolherem entre a esquerda revolucionária, a social-democracia tecnocrata e a direita envergonhada, que se dizia centrista para não afugentar ninguém e poder seguir com a vida, os portugueses tivessem ainda tido a possibilidade de votar em Marcelo Caetano e até, imaginem, em Salazar. A diferença é só uma: é que o Benfica ainda não fez a sua revolução. E não a fez – nem a fará – porque, alimentando-se acima de tudo de pertença e identificação, o desporto é a área da vida humana onde existe uma maior propensão para o saudosismo e onde as revoluções refundadoras são totalmente impossíveis.
As eleições já se anunciavam animadas, com a convicção de que Rui Costa avança e os desafios que lhe foram lançados por João Noronha Lopes, João Diogo Manteigas, Martim Mayer e até Cristóvão Carvalho. Ontem, porém, o comunicado assertivo e em certa medida até violento com que Luís Filipe Vieira reagiu ao processo de inquérito aberto pelo clube aos incidentes que protagonizou numa Assembleia Geral de 2019 deixou na generalidade dos observadores a convicção plena de que também ele se baterá no ato eleitoral de 25 de Outubro. Vieira tem razão numa coisa: só ao fim de quase seis anos, temendo que ele avance para baralhar ainda mais o campo eleitoral, é que o clube se lembrou de que aquilo que ele fez na AG era indigno do cargo que ocupava. Mais: Vieira não é processado pelos muitos atos aparentemente lesivos de gestão revelados pela auditoria entretanto feita, mas sim por ter apertado o pescoço a um sócio que o contestava. E, já que falou, meses depois de ter ido à CMTV desfazer a liderança de Rui Costa, certamente também por não ter gostado de o ver avançar sem grandes pruridos quando, em 2021, ele foi detido, na sequência da operação Cartão Vermelho, o ex-presidente resolveu dar uma esperança aos saudosistas. “Saberei estar à altura do complexo momento que atravessamos e sei o contributo que posso dar para responder a mais este desafio”, escreveu no comunicado, em que recusa ser “argumento expiatório”.
Qual é a grande diferença entre o desporto e a vida? Em ambos agimos muito por reação à frustração, mas no desporto o apelo à pertença é muito mais forte. Podemos mudar sentido de voto de um partido para outro se sentimos mais dificuldades com o custo de vida ou com o SNS, mas nunca associamos aquele ano em que fomos de férias às Maldivas a determinada governação. Isso já foi mérito nosso. No desporto, é certo que muitos, os dados à reflexão, encontrarão nela razões suficientes para não irem atrás de Vieira, mas a verdade é que todos os benfiquistas terão pelo menos uma memória gratificante do ex-presidente a juntar à arrelia que foi perder cinco dos últimos seis campeonatos, uma arrelia que os levou a sonhar com a mudança e até a adotar os comportamentos que, no tempo de Vieira, se viam do lado contrário da segunda circular. “Eles têm isto tudo minado...”, queixam-se. Só o sucesso dos últimos dois anos levou ao silêncio resignado muitos sportinguistas que anseiam pelo regresso de Bruno de Carvalho – mesmo que muitos deles nutram a secreta esperança de que Rui Borges falhe na sucessão a mais longo prazo a Ruben Amorim de maneira a que se perceba que, afinal, o mérito não foi de Frederico Varandas, que continuam a ver como um “usurpador”. Ao mesmo tempo, face ao que viram neste último ano, muitos portistas estarão certamente arrependidos de terem contribuído para os mais de 80 por cento com que André Villas-Boas derrotou Pinto da Costa nas eleições de 2024.
No Benfica, há quem se lembre de João Vale e Azevedo, dos dois anos seguidos fora da UEFA que o clube viveu no início do século em consequência indireta das aldrabices do seu ex-presidente, da recuperação financeira durante os mandatos de Vieira, da edificação do Seixal e da hegemonia que chegou a ter no futebol nacional, com duas finais europeias perdidas in-extremis e cinco campeonatos ganhos em seis, de 2014 a 2019 – panorama precisamente oposto ao de hoje. Os que querem um clube mais eclético olham para o elevado orçamento das modalidades e para o facto de se ter perdido no hóquei em patins e no voleibol e de não se ter sido sequer competitivo no andebol para explicar a incompetência desta direção, em profundo contraste face ao período áureo do vieirismo. É isso tudo que serve para dourar a pílula e para antecipar que uma eventual candidatura de Luís Filipe Vieira às eleições de 25 de Outubro não seja um nado morto. Mesmo que represente um regresso a um passado que muitos não querem ver de volta, é um passado que muitos outros encaram com saudade. No fundo, ainda que sem uma revolução fundadora dos excessos – e por isso mesmo sem esses excessos – é como se, no PREC, Marcelo Caetano pudesse concorrer a eleições e o próprio Salazar voltasse para lhe contestar a legitimidade e a competência de uma deriva liberalizante que o regime não idealizava antes de o ditador cair da cadeira.
A comparação não é, de forma alguma, política ou ideológica, convém esclarecer desde já. Não estou sequer a insinuar que Vieira ou Rui Costa sejam ditadores, porque nunca o foram. Mas não deixa de ser verdade que, à custa de anos e anos de poder, Luís Filipe Vieira dominava já o Benfica como a União Nacional controlou em tempos idos o aparelho de estado, durante o Estado Novo. Ou que Rui Costa foi o sucessor vindo de dentro, a tentar dar uma nova cara ao clube mas a manter muitas das práticas e das pessoas associadas à anterior governação, acabando por ser vencido pelo peso da inércia e do aparelho. Se Martim Mayer pode ser visto como um recuperador da tradição ancestral do benfiquismo, assim uma espécie de PPM a puxar para o modernaço – e o PPM de Gonçalo Ribeiro Telles até foi fundador da AD, com o PPD de Francisco Sá Carneiro e o CDS de Diogo Freitas do Amaral –, caberá a João Noronha Lopes e a João Diogo Manteigas, eventualmente até ao mais indefinido Cristóvão Carvalho, fazer as vezes da social-democracia de tradição europeia. Representada pelo PS de Mário Soares, mas também depois pelo próprio PSD, esta acabou por sair por cima do PREC como via mais consensual e moderada.
Acontecerá assim no Benfica? É incerto. O que diverge nos dois processos é que – lá está – no Benfica, no desporto, não há revoluções e, por isso, não há PREC. Não há revolta nem excesso, porque se mantém sempre a pertença e não se encara o exílio como opção. Pode-se emigrar, mas não deixa de se participar na vida do clube. O que estas eleições do Benfica nos podem ajudar a perceber é se, em tese, um estado tem condições para se reconverter e evoluir por si mesmo, sem uma revolução fundadora em cima da qual consiga surfar a onda. Escrevi um estado? Tolice! Um clube...
Nota: O Último Passe vai estar aqui de segunda a sexta-feira (excetuando feriados) até 14 de Julho, um dia depois da final do Mundial de clubes. A 15, o primeiro dia útil de defeso, sairá a primeira edição dos Reis da Europa, que depois seguirão a correnteza normal, com todos os campeões nacionais desta época, da Albânia à Ucrânia, numa periodicidade que eu gostava que fosse diária mas que ainda não sei se conseguirei manter tão frequente - até porque há um livro novo em fase de conclusão e me atrasei com a fase de escrita... A 4 de Agosto, com o início de 2025/26, voltará o Último Passe, mas em versão vespertina (às 19h), eventualmente não diária. A minha crónica de opinião será um dos conteúdos, esses sim diários, oferecidos apenas a subscritores Premium, mas poderá alternar com outros textos. A partir de 4 de Agosto, também, mas logo pela manhã, terei para vós (para todos, que este será conteúdo gratuito) a Entrelinhas diária, uma leitura de cinco minutos com tudo aquilo que precisam de saber para manter as conversas sobre futebol nas pausas para café no trabalho.
Analogia muito boa.