O Ángel da renascença
O crescimento do Benfica passa muito pela capacidade para aproveitar Di María. Uma coisa que Bruno Lage conseguiu e que, mesmo considerando-o imprescindível, escapou sempre a Schmidt.
Palavras: 1309. Tempo de leitura: 6 minutos (áudio no meu Telegram).
Cinco golos e três assistências nos últimos três jogos fazem de Ángel Di María a maior figura do momento do Benfica. Fundamental na forma como os encarnados arrancaram ontem no Mónaco a vitória (3-2) que os deixa a um ou dois pontos de assegurarem a presença no playoff da Liga dos Campeões, com dois cruzamentos de tal maneira convidativos que não pediam muito mais que coragem aos avançados que garantiam paridade numérica no ataque a zonas de finalização, o extremo argentino começa finalmente a mostrar como pode ser útil e que o plano original, de vir passar uma época aqui e outra no Rosário Central, antes de pôr um ponto final na carreira, podia ter sido um erro crasso. Porque no renascimento de Di María há dedo de treinador, muito para lá do vernáculo que extasia as multidões – e os grupos de futebolistas também... – e que ontem todo o país pôde apreciar em Bruno Lage na roda em que reuniu os jogadores para os manter ligados à corrente após a obtenção do objetivo. E se o argentino se tivesse cingido ao planeado nunca teria vivido este renascimento com que antecipa o ocaso.
É curioso que hoje apareça muita gente a interpelar imaginariamente Di María afirmando algo como “Queriam eles que te fosses embora” ou “Diziam eles que o problema eras tu”. Porque, voluntária ou involuntariamente, sim, Di María era parte do problema, parte da explicação do insucesso do Benfica. Não tivesse o jogador sido ameaçado pela máfia de Rosário, o que veio impedir que ele cumprisse o plano que tinha para o final de carreira, voltando à Argentina em Julho, e nunca se saberia que ele poderia ainda ser importante para o Benfica. O Di María de 2023/24 tinha dentro dele as mesmas qualidades e defeitos que tem o de hoje, mas não tinha o contexto – tático, físico... – para as expressar como as expressa hoje. E se a parte física é a mais fácil de explicar, a tática é a mais importante, sendo que ambas vão desembocar a Bruno Lage, o maior responsável pela mudança. O treinador já disse mais de uma vez que gasta muito tempo a falar com os avançados e, ainda ontem, depois de um jogo em que cada um dos seus três pontas-de-lança marcou um golo, voltou a reforçar essa componente. O futebol moderno substituiu o cruzamento pelo jogo interior como forma mais aconselhável de chegar ao golo e geralmente desvaloriza-se a capacidade de uma equipa que cruza demais. Mas aos que me perguntam o que seria hoje de um jogador como Jardel, cuja maior virtude era a forma como respondia a cruzamentos, como aparecia sempre no final de cada bola levantada para a área, o que me apetece responder é que ele precisaria de alguém como Di Maria, que tal como ele é um jogador do futebol de há 30 anos.
Mas já lá vamos à tática, porque essa é uma questão mais complexa do que parece e a parte física da equação é absolutamente cristalina. Até ao final de Novembro de 2023, Di María já tinha feito 20 jogos, quatro deles pela seleção argentina – de que entretanto abdicou. Este ano vai com 16. A grande diferença é, então, a desistência das idas mensais à América do Sul? Também, mas não só. Nos 16 jogos pelo Benfica que fez até final de Novembro de 2023, Di María tinha sido dez vezes substituído, mas apenas três antes dos 75 minutos. Este ano, já foi substituído 12 vezes, quatro antes da entrada no último quarto-de-hora. Além disso, se em 2023 só tinha saído uma vez do banco, este ano já o fez em quatro ocasiões. Tudo somado, além de ter menos quatro viagens transatlânticas no cartão de milhas – e só não são menos seis porque na pausa de Setembro o jogador ainda foi à Argentina para ser homenageado em partida da seleção –, Di María regista ainda menos 362 minutos em campo. São quatro jogos inteiros, a contribuir para que tenha uma disponibilidade física completamente diferente em cada momento. E, se não deixa de ser curioso que duas das quatro utilizações do argentino como suplente em 2024/25 tenham acontecido ainda com Schmidt, no início do campeonato, é legítimo que se pergunte porque é que ele não foi gerido assim na época passada. Terá sido por diversas razões, a mais evidente o facto de ainda estar na seleção. E depois há outras que só podem ser abordadas no plano sempre especulativo das impressões. Foi porque deu um pontapé numa garrafa de água quando Schmidt o substituiu para responder à expulsão de Musa no Bessa, logo na primeira jornada? Foi porque, na sequência do caso, disse claramente que o treinador sabia que ele não gosta de ser substituído?
Ora, sendo mais ou menos claro que menos Di María resultou num Di María melhor – ele já tem 36 anos, caramba... – não é menos evidente que não foi só a utilização a mudar. Foram também as missões que o treinador lhe reserva em campo e a forma como passou a protegê-lo a ele e à equipa daquilo que ele não faz tão bem. Ou, no limite, daquilo que não convém que ele faça. O que Lage quer de Di María não é que ele se desgaste que nem um louco atrás dos adversários, a pressioná-los para ganhar a bola, por muito que depois já lhe tenha dado jeito reforçar isso em conferência de imprensa. Ao mesmo tempo, não pode deixar a equipa vulnerável nesse momento, o que Bruno Lage conseguiu mobilizando Aursnes para pressionar na frente com o ponta-de-lança. E o norueguês é, ainda, a chave móvel para que, quando o Benfica tem bola, Di María possa aparecer onde mais lhe aprouver: se o argentino baixa para ligar, ele sobe para dar profundidade; se o extremo vai dentro, o médio interior abre para dar largura; se o extremo opta por ficar fora, junto à linha, o médio preenche o espaço interior, dentro do bloco adversário. Isto é básico? É. Mas para o fazer bem é preciso alguém com inteligência futebolística. E isso, neste Benfica, tem um nome: Aursnes.
O jogo de ontem explica bem esta questão. Onze contra onze, o meio-campo do AS Mónaco mandou no jogo, ganhando duelos e impondo a fisicalidade e a explosão de Camara e Zakaria. Nesse período, Aursnes foi engolido, Kökçü parecia que nem lá estava, Florentino expunha-se à possibilidade de um segundo amarelo, porque era o único a elevar a exigência física do jogo em cada bola dividida. Após a expulsão de Singo, aos 58 minutos, esperar-se-ia o crescimento do Benfica. Lage deu o sinal do banco, trocando Florentino por Amdouni, que foi colocar-se mais perto de Arthur Cabral, também ele chamado a render Pavlidis. E isto teve implicações no apoio que Aursnes dava a Di María – tanto o norueguês como Kökçü tiveram de baixar no campo para manter o dois para dois na zona de meio-campo. O resultado foi o crescimento dos franceses. O Benfica não rematou entre os 51 e os 76 minutos, período no qual se viu pela segunda vez em desvantagem. Estava ali montado um problema, cuja resolução acabou por depender da variável individual. Quem resgatou a equipa foi Di María, com dois cruzamentos teleguiados a resultarem em dois golos cujos méritos, porém, terão de ser quadripartidos. Além da qualidade da assistência, da finalização e das conversas que o treinador tem tido com os pontas-de-lança, para que eles apareçam onde Di María precisa, convém não esquecer a frescura que o argentino pode ter para escolher as melhores soluções, mesmo num jogo que estava já perto do final.
Help: Recebo as notificações dos convites para o FDV mas depois desaparece e não consigo aceder ao live
Pergunto até que ponto podemos falar de "futebol de há 30 anos". Sim, a tendência é diferente mas se há coisa que ontem prova é que, desde que bem feito, o cruzamento ainda resulta, como vimos na final do Mundial que colocar um extremo canhoto na esquerda pode também resultar, ou seja, todas as armas conhecidas e possíveis devem ser usadas, e é possível vencer.