Autópsia de um desastre
O que importa notar na goleada encaixada pelo Sporting não é que Amorim também começou assim ou que é altura de “levantar a cabeça”. É perceber o que aconteceu e se era inevitável que acontecesse.
Palavras: 1249. Tempo de leitura: 6 minutos (áudio no meu Telegram).
As horas após os piores resultados desportivos são fundamentais para perceber duas coisas: porque é que eles aconteceram e como se reage. Ao Sporting, ontem goleado pelo Arsenal, em Alvalade (1-5), no duro despertar do sonho em que a equipa estava na Liga dos Campeões, servem de pouco as memórias de ocasião que lembram, por exemplo, que também Ruben Amorim se estreou na prova a perder por 5-1 em casa – como se houvesse alguma comparação entre a equipa e o contexto de Setembro de 2021 e os de agora. Já pode ser mais útil a noção de que, estatisticamente, o jogo de ontem não foi pior do que a vitória por 4-1 contra o Manchester City e de que nem um nem outro resultado refletiram a verdade absoluta do que se passou em campo. Mas importante mesmo é perceber o que mudou. E, aqui, ainda que João Pereira tenha escolhido mal as palavras quando falou em “erro de casting” – falou, mas viu-se que nem ele compreendeu bem aquilo que estava a dizer –, o que houve foi um erro estratégico evidente, de certa forma corrigido ao intervalo e relacionado com a vontade de apressar a introdução de novas dinâmicas numa equipa que estava mecanizada e, para já, não precisava delas nem do efeito de entropia que elas vieram causar.
É verdade que o Sporting continua numa excelente posição na Liga dos Campeões, que se no início da época lhe oferecessem a possibilidade de somar três pontos nos jogos com o City e o Arsenal certamente assinaria por baixo e que, apesar do impacto que o resultado de ontem teve na diferença de golos, continua a um ponto do apuramento e a duas vitórias de garantir uma vaga direta nos oitavos-de-final, sem precisar de jogar os play-off. Os efeitos do resultado – e da demonstração absoluta de impotência da primeira parte –, a existirem, refletir-se-ão muito mais na confiança que o grupo terá ou não no processo daqui para a frente e, por isso, tornam muito mais importante a reação ao desaire. O Sporting de Rúben Amorim apanhou três goleadas em casa nas provas da UEFA (1-4 do Lask Linz em 2020, 1-5 do Ajax em 2021 e 0-5 do Manchester City em 2022), mas ganhou sempre os jogos que se seguiram (2-0 fora ao Portimonense, 1-0 fora e 3-0 em casa ao Estoril). Hjulmand deu ontem um passo importante na reação, ao afirmar que “é inaceitável” que o Sporting perca por 5-1, seja com que clube for, mas estas coisas exigem muito mais do que palavras e vão muito para lá da necessidade de “levantar a cabeça”, expressão emblemática dos anos de crise leonina, que ontem também se ouviu por duas vezes na flash-interview, uma delas ao próprio treinador.
Porque é que aconteceu o que aconteceu ontem? Porque o adversário, além de ser mais forte, teve um grau de aproveitamento das oportunidades que o City, por exemplo, não tivera? Sim, feitas as contas à integralidade dos jogos, o Sporting de ontem até foi estatisticamente melhor do que aquele que tinha goleado o City: fez 19 remates quando há três semanas só tinha feito nove, só permitiu 13, quando na altura permitira 20, entrou mais vezes no último terço do que os ingleses (46-45), quando há três semanas tinha sido absolutamente dominado neste parâmetro (20-62) e ganhou oito cantos face a três do Arsenal, quando no jogo do City esta estatística tinha fechado em um para onze. Mas há um número que os responsáveis leoninos devem encarar com preocupação: é que, com mais volume de jogo, quase o dobro dos remates, o City acabara com um índice de golos esperados (xG) de 2.23 para os 3.89 do Arsenal ontem. E o que é que isto nos diz? Que o Arsenal teve uma capacidade muito superior de transformar jogo em perigo e que, não, a questão não esteve apenas ligada à eficácia que os ingleses de ontem tiveram e os de há três semanas não tinham tido. Ao intervalo do jogo de ontem, ainda recorrendo aos dados do SofaScore, Sporting e Arsenal estavam equilibrados (22-22) em entradas no último terço do campo, mas os ingleses tinham 21 ações na área face a apenas cinco dos leões. Porquê? É aqui que entra a subjetividade da explicação, mas não é fácil fugir à dimensão estratégica do jogo.
No final, perguntaram a João Pereira se o problema tinha sido a escolha de Edwards, jogador defensivamente ausente, para o lugar do lesionado Pedro Gonçalves, e se não teria sido mais lógico ter ali um terceiro médio, por exemplo Bragança. O treinador respondeu que não, pois até alertara Morita para tapar o “overload” que se sabia que o Arsenal iria fazer daquele lado, o lado de Saka. E Morita, ao contrário de Edwards, andou de facto muito por lá, como podem ver no quadro de posicionamentos médios (é o número 5), mas isso depois implicava que ele não estivesse tanto no corredor central quando os ingleses saíam dali com a bola. Defensivamente essa foi a maior dificuldade ontem enfrentada pelo Sporting, mas como o jogo é uno, boa parte dos problemas leoninos tiveram que ver com a forma como não ligava com qualidade primeira e segunda fases de organização ofensiva. Os leões tiveram sempre muita dificuldade na saída de bola, mérito da pressão do adversário, sim, mas também fruto da alteração estratégica que passou pela subida mais precipitada dos dois alas. O quadro mostra como Geovany Quenda e Maxi Araujo estiveram muito mais baixos no jogo com o City, dando aos três de trás linhas de passe seguras que impediam que a bola de saída fosse perdida ou batida sem critério para a frente, e que apareceram ontem bastante mais subidos no campo, não só privando a equipa dessa via de saída como forçando o isolamento de Gyökeres, a quem falta gente por perto. É diferente ter Trincão dentro, perto dele, ou dois extremos abertos, que podem fornecer-lhe cruzamentos de que ele não beneficia (o Sporting fez um cruzamento contra o City e 15 contra o Arsenal) mas não lhe dão referências próximas para os seus temíveis ataques à profundidade em contra-movimento com outro avançado.
Boa parte destes problemas já os antevira na análise que fiz ao sistema usado por João Pereira na equipa B (que pode ler aqui), quando se soube que ele seria o escolhido de Varandas para substituir Ruben Amorim. Dito isto, é altura de recordar uma das minhas frases favoritas: uma equipa é um organismo vivo. Junto-lhe outra: não há sistemas bons e sistemas maus, o que há é sistemas mais ou menos trabalhados. O Sporting pode vir a ter sucesso assim? Talvez, com tempo ou com adversários menos capazes de lhe explorar as debilidades provocadas pela necessidade de adaptação a posicionamentos diferentes do que o Arsenal de ontem. Havia necessidade de apressar esta mudança? Não, definitivamente. E essa é a grande questão que tem de ser debatida dentro do balneário, entre um treinador que não quer ser “um erro de casting” e os jogadores que acham inadmissível perder por 5-1, “seja com que adversário for”. Se falharem na autópsia ao jogo de ontem, pouco lhes restará além de continuarem a ter de “levantar a cabeça”.
João Pereira está a cometer erros que não se admitem a um treinador, desde logo ao chegar e querer mudar tudo. Não acreditar num sistema de jogo vencedor, que tantos frutos tem dado e que os jogadores conhecem de cor, já tem muito que se lhe diga. Mas João Pereira quer mostrar que é treinador, quer se afirmar à pressa e está a querer mudar demasiado o que nem deveria mudar de todo, pelo menos no futuro mais próximo. Ruben Amorim também mudou o seu sistema ao longo dos anos, também colocou nuances novas e alterou movimentações, mas nunca o fez à pressa, salvo quando chegou, quando chegou o Sporting tinha sempre de mudar, não era a equipa vencedora que João Pereira apanhou. João Pereira tem de parar e pensar no que está a fazer, voltar ao sistema que funcionava e ir mudando o sistema aos poucos, se o quiser fazer. Assim está a estragar o trabalho que estava feito.
Outra questão prende-se com a intensidade que os jogadores tanto se queixaram ontem, que é grave, pois nunca vi falta de intensidade em jogos destes em equipas Portuguesas...Isto está a lembrar demasiado a época em que o Sporting tinha tudo para passar, mas desistiu de competir com o Marselha em noites desastradas de Adan e depois de Esgaio.