Momento de transição
A derrota no Estoril custou a Taça da Liga, mas o preocupante é a fotografia geral de rarefação de talento jovem num FC Porto cuja política tem privilegiado sempre a experiência e não o potencial.
Um minuto não muda a realidade mas pode fazer muita mossa na perceção que temos dela. Aqui, na verdade, nem falamos de um minuto. Foram seis segundos entre o momento em que Guitane viu voltar, obediente, ao seu pé esquerdo, a bola resultante de um drible fracassado em cima de João Mendes, de maneira a poder esgueirar-se com ela entre o lateral e Eustáquio, e o instante em que, tendo-a feito passar pelo espaço entre as pernas de David Carmo, a viu entrar junto ao poste mais próximo nas redes de Cláudio Ramos, carimbando a eliminação do FC Porto da Taça da Liga. “O que vale a Taça da Liga, afinal?”, perguntarão alguns portistas mais renitentes em olhar para a realidade ou para a derrota de ontem. “É um caso isolado”, alegarão, preferindo fixar-se, sim, na perceção deixada por resultados como os 3-0 com que a equipa se impôs em Famalicão no sábado, por exemplo, ou no facto de os dragões serem a equipa portuguesa mais bem colocada para chegar aos oitavos-de-final da Liga dos Campeões. Mas a questão não está na eliminação da Taça da Liga, como não está na vitória de Famalicão ou nos nove pontos somados na Champions, e colocar-se-ia na mesma se o jogo com o Estoril tivesse acabado empatado e a flash-interview de Sérgio Conceição se fixasse na necessidade de uma vitória por dois golos sobre o Leixões no último jogo do grupo para chegar à Final Four. A questão está na noção de que, tal como assumido nas entrelinhas pelo treinador, o FC Porto passa um momento de transição em que até pode fazer sentido “apostar mais em jogadores da equipa B ou dos sub19”, já que muitas das segundas linhas do plantel principal tardam em dar respostas e a política corrente, de privilégio à experiência em detrimento do potencial, não tem dado frutos. Ou está, pela inversa, na ideia de que, como dificilmente esse momento de transição trará conquistas imediatas, assumi-lo pode ser um luxo a que a equipa não está em condições de dar-se, porque tem aí a bater à porta uma série de jogos de importância extrema, como a receção ao Shakhtar (já nesta quarta-feira), a visita ao Sporting (de segunda a uma semana) ou as partidas contra o Boavista e o SC Braga com que arrancará em 2024 na Liga. Não fica fácil encarar estes momentos quando o crivo de entrada na Liga dos Campeões – e de acesso aos milhões – apertou de três para duas equipas portuguesas e quando se aproxima um ano de eleições em que qualquer fracasso pode ser pesado na altura de optar entre continuidade ou mudança. E é a ponderação de todas as possibilidades que nos leva a olhar para o que nos trouxe até este contexto. O FC Porto teve na seleção nacional de sub19 que chegou à final do Europeu, em Malta, no Verão, o guarda-redes Gonçalo Ribeiro, o lateral Martim Fernandes, os defesas-centrais António Ribeiro, Gabriel Brás e Luís Gomes e o avançado Jorge Meireles, os dois últimos a partir do banco. De todos, só Martim já soma minutos (17) na equipa principal esta época. Mesmo nos B, nenhum dos seis está no onze mais usado, cuja média de idades supera os 22 anos. Mas, depois de já não ter feito caminho com alguns dos finalistas de 2019 – João Mário, Vitinha e Fábio Vieira passaram o torniquete, a custo, mas o guarda-redes Francisco Meixedo ou o médio Rodrigo Fernandes, mais tarde contratado ao Sporting, continuam nos B, de onde entretanto já foram dispensados o lateral Tiago Lopes e o central Levi Faustino –, quando olha para baixo, Conceição tem preferido a experiência ao potencial. E quando precisa de recorrer aos B, regra-geral o que vem de lá são jogadores com caminho feito, como Zé Pedro (26 anos) ou João Mendes (23), eventualmente capazes de dar uma melhor resposta imediata mas não de fazer prever uma margem de progressão que arraste a equipa com eles e eventualmente garanta no futuro mais-valias de mercado. O problema do FC Porto vai bem para lá dos seis segundos entre o primeiro drible de Guitane a João Mendes e o descanso da bola nas redes de Cláudio Ramos. Vai mesmo bem para lá dos efeitos de uma derrota que não custará mais do que a não revalidação do título da Taça da Liga, a menos importante das provas em que a equipa entrou. É uma questão de política desportiva. E é isso que tem de ser definido além do instante que demora uma flash-interview.
Um City em sofrimento. Entre as declarações da véspera e as de ontem não há assim tantas diferenças em Pep Guardiola. Na terça-feira, o treinador do Manchester City disse aquilo em que acredita e aquilo que achava que os jogadores precisavam de ouvir. “Nunca ninguém o fez, mas acho que vamos consegui-lo”, disse da possibilidade de chegar ao final da época como tetracampeão, apesar de três empates seguidos, contra Chelsea, Liverpool FC e Tottenham, lhe terem custado a liderança. “Estamos a sofrer”, concedeu ontem, depois da derrota contra o Aston Villa ter deixado a equipa em quarto lugar, já a seis pontos do Arsenal e com apenas mais três do que um Manchester United que toda a gente vê em crise. O City foi totalmente atropelado em Villa Park, os dois remates (xG total de 0,65) que fez foram o mínimo histórico de uma equipa de Guardiola em jogo de campeonato, tal como os 22 que permitiu (xG total de 2,38) mostram exatamente como a dimensão física do jogo da equipa de Emery chegou para tirar os campeões do relvado. A equipa vale muito mais do que mostrou ontem e para o provar bastar-lhe-á ter de volta Rodri, que estava castigado, mas é bom que se tenha noção de que ali também se cometem muitos erros – e um deles será jogar com dois defesas-centrais a meio-campo, por muito que Akanji e Stones tenham argumentos em construção, quando no banco até está um internacional inglês naquela posição, Kalvin Phillips, contratado há ano e meio ao Leeds United por 50 milhões de euros.
E agora, Abel? Se Luís Castro foi inteligente na forma como previu a quebra inevitável que o Botafogo iria passar, saindo em alta para onde lhe recheassem a carteira antes do descalabro, Abel Ferreira tem tido um sucesso mais prolongado do que o expectável à frente do Palmeiras, mas dificilmente resistirá muito mais tempo. É a lei da vida que o diz. Bicampeão brasileiro confirmado nesta madrugada, depois de já ter sido bicampeão paulista e bicampeão da Copa Libertadores, pouco mais restará ao treinador português mais bem-sucedido de sempre no futebol brasileiro do que encarar outros desafios. O título de 2023, conseguido com o mais baixo total de pontos desde o do Flamengo em 2009 – e com menos 20 do que o Flamengo de Jesus em 2019 – pode nem ter sido brilhante ou atrativo em termos de ideias de jogo, mas foi exemplar na gestão de um grupo mais limitado, pela perseverança que o levou a conseguir superar uma desvantagem que chegou a ser de 14 pontos e pela capacidade de explorar o talento do menino Endrick, a figura da recuperação, no meio da força tranquila de gente como Raphael Veiga, Gustavo Gómez ou Zé Rafael. A ligação de Abel à Crefisa, o grupo financeiro de José Roberto Lamacchia, o marido de Leila Pereira, a presidente do Palmeiras, é fortíssima e seguramente que o português saberá que dificilmente encontrará no Brasil um ambiente tão propício como o que tem no Allianz Parque, mas também não lhe será difícil admitir que dali só tem caminho para baixo e que por isso este pode ser o momento ideal para encarar novos desafios – mas na verdade já era assim há um ano, quando foi campeão pela primeira vez. E a questão é: o que quer fazer Abel? Se andar só atrás do dinheiro, não terá dificuldades em encontrar clube num dos “El Dorados” do futebol atual. Mas do que eu gostava mesmo era de o ver à frente da seleção brasileira.