Lage, Schmidt e o projeto
É curioso ler a entrevista de Lage e imaginar Schmidt a dá-la daqui a quatro ou cinco anos. E trocar as menções a Vieira por outras, a Rui Costa. O que correu bem e o que correu mal nos dois casos?

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Não sei se foi propositado, mas a entrevista de Bruno Lage à edição de hoje do Record remete muito mais para a atualidade do Benfica do que se pensaria quando se fala de um técnico que foi campeão há cinco anos e saiu da Luz há quatro. Tal como fez Roger Schmidt em 2022, Bruno Lage montou uma máquina imparável em 2019. Foi campeão e, é certo, a máquina dele durou 12 meses, enquanto que a do alemão já passou o segundo semestre de operações em busca de peças e debaixo do risco de gripar. Tal como aconteceu com Schmidt, a dada altura a máquina deixou de funcionar em condições, mas passados estes anos – e muito porque o funcionário contratado para pôr a trabalhar uma outra máquina, que foi Jorge Jesus, falhou de forma clamorosa – Lage já sente a confiança necessária para dizer aos jornalistas que o importante não é se ele perdoou Luís Filipe Vieira por tê-lo demitido. “A pergunta tem de ser se o presidente já se perdoou a ele próprio. Não por me despedir mas por ter abandonado o projeto que tinha dado tantos frutos”, disse.
“O projeto”, sempre “o projeto”. No futebol haverá quem reaja a este conceito abstrato como se dizia que reagia o propagandista nazi Joseph Göbbels quando lhe falavam de cultura. “Puxo logo da pistola!”. Parece que a frase nem era dele, mas sim do dramaturgo Hanns Johst, mas isso para o caso interessa pouco ou nada. Fundamental é que se percebam as dúvidas atuais de Rui Costa e que elas sejam enquadradas nas que também há-de ter tido Luís Filipe Vieira. Se eu achasse por um segundo que Vieira podia vir a dizer sinceramente o que pensou naquela altura e não aquilo que agora acha que o faria ficar bem na fotografia histórica até seria capaz de subscrever o que concluiu o Sérgio Krithinas no editorial do jornal: “seria bom ouvir um dia destes Luís Filipe Vieira responder à pergunta”. É que todos sabemos que a história se repete... E é por isso que a mim me parece mais interessante ouvir Rui Costa acerca de outras coisas: qual é mesmo o projeto do futebol do Benfica? Que futebol quer o Benfica jogar? E em que medida é que Roger Schmidt é o bastião desse futebol? Ou em que medida é que a troca de treinador serviria ou atrapalharia esse projeto? Porque tudo o que vamos vendo discutido é quem é que ia perder face se o Benfica agora trocasse o operador da máquina, se ele ou o engenheiro-chefe.
Vieira foi tendo vários projetos para o Benfica. O primeiro foi chegar ao poder no futebol e fazê-lo encostado ao lobby do betão que dividia a direção de Manuel Vilarinho, sendo que esta unia várias fações apenas interessadas em correr com João Vale e Azevedo. O segundo foi chatear Pinto da Costa e trazer para a Luz José Veiga, um antigo parceiro do presidente do FC Porto, que com ele arrastou uma série de rejeitados do Dragão, como Argel, João Manuel Pinto, Zahovic, Drulovic ou Fehér. Para quem não sabe, o primeiro agente com quem Vilarinho tinha trabalhado, nas contratações de Roger e André, mal foi eleito, em 1999, foi um certo Jorge Mendes, ainda longe da influência que depois veio a ter no futebol mundial. O terceiro projeto foi ser campeão. Já o tinha sido em 2005, com Trapattoni, mas toda a gente tinha a noção de que aquele campeonato podia ter caído para qualquer dos lados, e a dada altura Vieira, que passava a vida a dizer que era um tipo humilde, do Bairro das Furnas, fartou-se dos treinadores com pedigree com que lhe andavam a tapar os olhos – Trapattoni, Koeman, Quique... – e voltou a apostar num dos dele, como já tinha feito com Camacho ou Fernando Santos, o espanhol do sovaco transpirado ou o lisboeta da Penha de França. Entrou Jorge Jesus, vindo diretamente do subúrbio da Reboleira, com a sua linguagem de índole popular e, pela primeira vez no vieirismo, o Benfica jogou um futebol claramente superior a toda a gente na Liga. Foi provavelmente por se lembrar disso que, em 2013, depois de perder tudo (Liga, Taça e Liga Europa) na reta final, Vieira não despediu Jesus.
A meio do caminho que levou ao tetracampeonato, porém, Vieira mudou o projeto. Pode tê-lo feito por influência de Mendes, que já era o maior parceiro estratégico da SAD, da direção financeira, que pode ter-lhe feito perceber que há mais mais-valias em jogadores formados em casa e contabilisticamente incluídos a zero do que nos craques sul-americanos que Jesus pedia a cada ano, ou por acreditar mesmo no potencial do Seixal. E, em 2015, Jesus foi corrido. Vieira e Mendes propuseram-lhe, imaginem, a Arábia Saudita, destino que ele não quis, optando por se deixar seduzir por Bruno de Carvalho e pelo Sporting. O projeto de que fala Lage é esse, que começou a ser trabalhado por Rui Vitória e que ele continuou. Passava por aproveitar devidamente os miúdos que saíam do Seixal, para que em, vez de eles serem transferidos pelos 15 milhões da ordem que valeram Bernardo Silva, João Cancelo ou Ivan Cavaleiro, graças à tal parceria com a Gestifute, rendessem muito mais. Rui Vitória ganhou o campeonato de 2016 com Renato Sanches e o de 2017 com Nélson Semedo e Gonçalo Guedes – que já tinham estado no anterior, mas com menos impacto. Mas perdeu o de 2018 para o FC Porto do fair-play financeiro e as críticas começaram: ao treinador, mas também ao projeto, porque Vieira foi acusado de não ter investido o suficiente para obter o pentacampeonato tão desejado. E quando, a 2 de Janeiro de 2019, a derrota em Portimão deixou a equipa a sete pontos do FC Porto, Vitória caiu e subiu Bruno Lage. Rolou a cabeça do treinador para acalmar as hostes. E para salvar o projeto.
Com Bruno Lage, que entre outras medidas construiu a equipa em torno de João Félix, o Benfica ganhou 18 dos 19 jogos que faltavam para acabar o campeonato, cedendo apenas um empate, em casa contra a B SAD, e depois de estar a ganhar por 2-0. Foi campeão. Na época seguinte, venceu o Sporting na Supertaça por 5-0 e ganhou 16 dos 17 jogos da primeira volta. A vitória em Alvalade, contra o Sporting, por 2-0, a 17 de Janeiro de 2020, conjugada com uma derrota do FC Porto no Dragão com o SC Braga deixava o Benfica com sete pontos de avanço. No entanto, a vantagem esfumou-se. À derrota no Dragão, no início de Fevereiro, sucederam-se mais quatro jogos com apenas uma vitória até à interrupção provocada pela pandemia. O regresso à competição, em Junho, não correu melhor: dois empates e duas derrotas em cinco jogos levaram à substituição de Lage por Nélson Veríssimo, que manteve o lugar quente até à chegada de Jorge Jesus. A dimensão do Benfica e da sua onda de seguidores pode tornar as suas equipas imparáveis quando há comunhão – e Lage reconheceu a importância do público, por exemplo, na sua primeira vitória, um 0-2 que se transformou num 4-2 ao Rio Ave –, mas é um problema quando toda a gente se convence de que vai ganhar e depois não ganha. O peso da desilusão, ali, é incomportável. Depois das 34 vitórias em 36 jogos daquele ano de 2019, a queda de 2020 valeu atos de vandalismo na casa do treinador e de alguns jogadores. E a cabeça que rolou, daquela vez, foi a de Bruno Lage, já não para salvar o projeto – que o projeto foi com ele – mas para salvar o presidente, que a dada altura se convenceu de que o projeto não ganhava e que mais valia recuperar o homem que ganhava contra esse mesmo projeto. Voltou Jesus.
Roger Schmidt está um pouco nesse equilíbrio instável em que estava Lage em 2020. Tal como o Lage de 2019, o Schmidt de 2022 construiu uma máquina de jogar futebol. Tal como o Lage de 2020, o Schmidt de 2023 cometeu erros. Dos de Lage, francamente, já nem me recordo, mas há-de tê-los cometido, que nenhuma equipa deixa de ganhar de forma tão súbita se não tiver havido erros pelo meio. Os de Schmidt são facilmente identificáveis: reduziu as opções ao seu dispor esquecendo-se constantemente no banco de inúmeros jogadores de um plantel que foi caro e era suposto ser rico e variado, e nunca se definiu em questões como a do ponta-de-lança, na qual foi apanhado entre as exigências do seu tipo de futebol – o Gegenpressing – e as caraterísticas dos jogadores que lhe puseram à frente, mais criativos e pouco dados às tarefas defensivas. Tal como Vieira em 2020, o Rui Costa de 2024 chega a esta altura a pensar no que será melhor, seja para ele ou para a equipa. Tendo ele renovado o contrato de Schmidt há um ano, ser-lhe-ia difícil reagir como Vieira e fugir para a frente demitindo o treinador no momento em que a contestação cresceu. O que não é mau em si. Basta que os dirigentes e o treinador voltem a estar na mesma página em relação ao que é o projeto. E, já agora, que haja projeto que vá além da manutenção de cargos e posições, que as eleições são só em 2025 e ainda há mais um Verão antes de se ir a votos.