Jota e o star system
A morte de Diogo Jota deixa um vazio no ataque do Liverpool FC e da seleção nacional, mas sobretudo no coração de família, amigos e companheiros, que viam nele tudo o que devia ser o futebol.

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Já lá vai há muito o tempo em que os jornalistas viajavam nos mesmos aviões que as equipas de futebol de elite que acompanhavam e em que, na viagem de regresso, mais descontraída, sobretudo quando se ganhava, havia conversas informais e às vezes até entrevistas. As esferas foram-se gradualmente separando, primeiro com embarques e desembarques alternados e uma equipa de seguranças a defender a cabina dos jogadores como quem defende bolas paradas numa final europeia, e depois com o uso de aviões diferentes. Nunca pude, por isso, falar com Diogo Jota e confirmar o que vos digo a seguir, que vem dos testemunhos de colegas e amigos. Que o atacante do Liverpool FC, cuja morte trágica, ontem, em violento acidente de viação que vitimou também o irmão, André Silva, deixando adeptos de todo o mundo num estado de revolta e consternação, era não só um futebolista de excelência, ainda com anos para dar à sua equipa e à seleção nacional, mas também um exemplo de como é possível ser anti-vedeta no meio de um “star system” que banaliza os milhões e, por isso mesmo, distribui agrados de uma forma tão absurda que deixa os melhores muito mal preparados para a vida. Tanto como os golos, nascidos do futebol intuitivo que sempre foi o dele, esse é o legado de Jota no qual valerá a pena refletirmos.
Jota participou num painel no Web Summit, em 2020, porque além de ser futebolista tinha a mania dos jogos de consola. Todos os jogadores de futebol têm? Sim, mas Jota não era só um fanático do EA Sports FC, o jogo nessa altura conhecido como FIFA, a ponto de ter chegado a celebrar golos na Premier League simulando que segurava um comando. Nesse ano de 2020, ele atingiu uma impressionante série de vitórias ao mais alto nível, que o colocaram no Top20 dos melhores jogadores mundiais. Durante a pandemia, ainda no Wolverhampton, ganhou o FIFA20 E-Premier League Invitational, torneio que reuniu um futebolista de cada equipa e em cuja final bateu o seu futuro companheiro Trent Alexander-Arnold, já no Liverpool FC. No ano seguinte formou uma equipa de E-Sports, à qual começou por dar o seu próprio nome e que depois rebatizou como Luna Galaxy, em alusão a uma das suas cadelas. Mas foi em 2020, no Web Summit, que todos percebemos um pouco melhor quem era Diogo Jota, porque ele disse ali, frente a um palco global, que até há bem pouco tempo, até aos 16 anos, pagava para jogar, no Gondomar SC. Num século em que a deteção de talento é cada vez mais precoce, em que os candidatos a estrelas são desde crianças descobertos, reservados e mimados pelos clubes grandes em academias luxuosas e com a satisfação de todos os caprichos imagináveis, para que não pensem sequer em fugir, o Diogo Jota de 16 anos pagava a mensalidade para usufruir dos treinos noturnos e dos jogos ao fim-de-semana com os amigos de chuteiras. E isto explica muita coisa.
Diogo Jota não foi uma estrela instantânea. Aos 16 anos, em 2013, mudou-se para a equipa de sub19 do FC Paços de Ferreira e contribuiu com golos em catadupa para uma manutenção tranquila na I Divisão nacional do escalão. Aos 17, em Outubro de 2014, Paulo Fonseca deu-lhe a primeira titularidade na equipa sénior, num jogo da Taça de Portugal contra o Atlético de Reguengos, do Campeonato de Portugal, e ele respondeu com um golo. Marcou mais três nessa primeira época e 14 em 2015/16, o que lhe valeu a atenção de Jorge Mendes, o super-agente que era dos mais emocionados ontem com as notícias do falecimento do futebolista. Foi com apadrinhamento de Mendes que Jota assinou pelo Atlético Madrid, como foi com Mendes que veio depois emprestado para o FC Porto de Nuno Espírito Santo e seguiu para o Wolverhampton do mesmo treinador. Ali, tornou-se instrumental na subida à Premier League e, depois, nos apuramentos para as provas da UEFA. Diogo Jota chegou à seleção nacional em Novembro de 2019, pela mão de Fernando Santos. Marcou três golos – um à Croácia e dois à Suécia – nas primeiras titularidades, já na segunda metade de 2020, numa altura em que o seu futebol levara Jürgen Klopp a pagar 45 milhões de euros para o levar para o Liverpool FC. Os Reds são há uns anos vistos como campeões do recrutamento a partir de uma abordagem mais centrada nos dados mas, tanto como as métricas, o que foi decisivo para que Jota tivesse sucesso em Anfield foi a personalidade anti-estrela. O Liverpool FC vivia muito de um ataque formado por Sadio Mané, Roberto Firmino e Mo Salah. A Jota restava pouco mais do que ser alternativa aos três. E bola-baixa... Só que, apesar de uma lesão no joelho, em Dezembro de 2020, lhe ter roubado três meses da temporada, ele acabou por fazer mais jogos como titular (19) do que saído do banco (11) nessa primeira época de vermelho. E sempre com a mesma cara, porque a formação sem excesso de proteção ou endeusamento lhe permitiu entender uma coisa fundamental nos desportos coletivos. Que é isso mesmo – que são coletivos e que, neles, todos contam.
Não sei se esse aspeto foi tão fundamental como me parece na formação da personalidade de Jota e se foi por isso – e não apenas em nome da habitual chuva de elogios a quem morre – que todos os que com ele partilharam um balneário ficaram ontem tão perturbados. Não vou fingir que o conhecia, porque na verdade nunca cheguei a trocar com ele mais do que um boa tarde se calhávamos a cruzar-nos nas imediações dos relvados nos treinos de véspera de jogos da seleção, mas fico com a convicção de que mais do que o drible, a velocidade ou a perceção antecipada e intuitiva do local onde a bola ia cair, na área, a permitir-lhe impor um físico pouco impactante na chegada a finalizações que em condições normais deveriam estar-lhe vedadas, o que as reações dos colegas à sua morte destacaram foi uma personalidade amigável, os gestos sempre solidários e simpáticos. Como um deles escrevia – e francamente já nem sei qual –, Jota não era só um “companheiro de equipa”. Era um “companheiro”. E, numa era em que cada vez mais vemos gente colocar-se à frente da equipa, acima do clube, na procura do ângulo certo debaixo do holofote, de maneira a que se perceba melhor a sua luz própria, numa altura em que temos jogos de formação interrompidos por insultos dos pais aos treinadores que lhes substituem os filhos ou os colocam a jogar em posições que não os favorecem, encontrar a fórmula para construir jogadores que fazem brilhar os outros e ficam felizes com isso devia ser muito mais importante do que a busca do novo Cristiano Ronaldo. O futuro do futebol precisa de mais Jotas, mesmo que tenham de pagar para treinar e jogar.
Nota: O Último Passe vai estar aqui de segunda a sexta-feira até 14 de Julho, um dia depois da final do Mundial de clubes. A 15, o primeiro dia útil de defeso, sairá a primeira edição dos Reis da Europa, que depois seguirão a correnteza normal, com todos os campeões nacionais desta época, da Albânia à Ucrânia, numa periodicidade que eu gostava que fosse diária mas que ainda não sei se conseguirei manter tão frequente - até porque há um livro novo em fase de conclusão e o prolongamento da época de futebol levou a que me atrasasse com a fase de escrita... A 4 de Agosto, com o início de 2025/26, voltará o Último Passe, mas em versão vespertina (às 19h), eventualmente não diária. A minha crónica de opinião será um dos conteúdos, esses sim diários, oferecidos apenas a subscritores Premium, mas poderá alternar com outros textos. A partir de 4 de Agosto, também, mas logo pela manhã, terei para vós (para todos, que este será conteúdo gratuito) a Entrelinhas diária, uma leitura de cinco minutos com tudo aquilo que precisam de saber para manter as conversas sobre futebol nas pausas para café no trabalho.