Isto não é o bem contra o mal
O futebol não se joga no universo maniqueísta dos filmes de heróis. Não é Superman contra Lex Luthor, Luke Skywalker contra Darth Vader ou Flash Gordon contra Ming, o Impiedoso. Entender isso ajuda.
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Não há muitas formas diferentes de dizer isto a não ser recorrendo à velha lenga-lenga de que o jogo é uno, que não há cá equipas defensivas e equipas ofensivas e que todas defendem a pensar na forma como vão atacar e atacam com a maneira de defenderem em mente. Ou que as equipas atacam quando conseguem e defendem quando a isso são forçadas. Mas se uma equipa tem a bola na sua posse durante 67 por cento do tempo de um jogo, remata 33 vezes, nove delas enquadradas, e mesmo assim não ganha, a última coisa que pode dizer-se é que a culpa é da outra, porque se focou demasiado nas tarefas defensivas. A história do Manchester City-Real Madrid de ontem pode ser uma história de incapacidade de reconversão do City ou de superação de várias adversidades por parte do Real Madrid, mas não é, não pode ser, uma história de negação de um compromisso por parte da equipa que, é verdade que nos penaltis, até acabou por sair por cima. Porque o futebol não é a luta do bem contra o mal. É a arte de adequar uma equipa àquilo que o jogo pede dela.
A riqueza do jogo é muito esta: cada 90 minutos podem oferecer desafios diferentes, mesmo que depois até sejam ganhos ou perdidos da mesma forma. Há uma semana, no Bernabéu, o espetáculo foi inegavelmente melhor, porque o foco estratégico do Real Madrid foi diferente, mas a repartição da bola foi mais ou menos a mesma. Se ontem a bola foi do City por 67 por cento do tempo, há uma semana tinha-o sido por 62 por cento – lá está, em casa o Real Madrid quis jogar mais, mas isso não lhe chegou para controlar o jogo com a bola, deixou-o sempre exposto, o que pode ter sido importante na mudança da abordagem de Ancelotti. “Era a única maneira que tínhamos de passar aqui”, reconheceu o velho treinador italiano no final do jogo de ontem. Seria? Não seria? É uma traição aos valores do clube que ele terá agora de pagar com juros quando defrontar equipas mais pequenas? Um desperdício do imenso talento que lhe puseram à disposição? Podemos discutir isso até à insanidade, mas além de ninguém ter certezas nesse cenário contra-factual, não era isso que estava em jogo ontem. E no que estava em jogo ontem foi o Real Madrid que ganhou o direito a entrar em campo na meia-final.
O que mudou por causa da abordagem madridista? Não foi muita coisa, que as equipas eram as mesmas. Se há uma semana o City tinha trocado 689 passes, com 91 por cento de acerto, ontem até viu crescer a percentagem de acerto para 92 por cento dos 920 que tentou – mas em duas horas de jogo, o que dá uma média de 690 por 90 minutos, os mesmos 7,6 por minuto da primeira mão. No meio disto tudo, mudaram duas coisas. Há uma semana, o City tinha feito três golos em doze remates e ontem só marcou um em 33. Porquê? Falta de acerto? Certamente. Acontece... Maior concentração do adversário perto da sua baliza? Também. Mas se isso bastasse para obter resultados qualquer equipa seria capaz de bloquear os favoritos e os jogos acabavam todos empatados. O elefante na sala que todos teimam em ignorar quando se trata de equipas de Guardiola é a negação dos princípios de jogo ofensivo que o próprio Pep advoga. Há uma semana, o Manchester City tinha feito cinco cruzamentos. Ontem fez 46. Leram bem: 46! Não é muito, é estupidamente demasiado, mais ainda se tivermos em conta que só oito desses 46 chegaram a um jogador vestido de azul.
E este dado é sintomático das dificuldades que o Manchester City está a encontrar ante adversários que se fecham mais. Contra o Arsenal, na Premier League, 73 por cento de posse de bola, 32 cruzamentos, 0-0. Contra o Chelsea, na Premier League, 70 por cento de posse de bola, 23 remates feitos dentro da área, muitos na sequência de alguns dos 47 cruzamentos tentados, 1-1. Se uma equipa que, esta época, acerta, em média, 4,8 cruzamentos por 90 minutos, chega ao jogo decisivo para a tentativa de repetir o sucesso na Liga dos Campeões e cruza 46 vezes, há alguma coisa que ela não está a fazer bem. E é seguramente nisso que Guardiola estará a pensar neste momento e não na traição de Ancelotti aos valores do Real Madrid, cometida ao baixar tanto o bloco. “Baixámos demasiado e o City teve mais controlo, ainda que eles tenham sempre o controlo dos jogos”, explicou no final o treinador italiano. É que o que estava ali em causa não era quem iria controlar o jogo, que isso o City faz sempre e, mais, faz bem. O que estava em causa era o que fazer para impedir que esse controlo se traduzisse em golos, era levar o City para uma dimensão do jogo em que ele se sentisse menos confortável. Forçá-lo a fazer cruzamentos incessantes, por exemplo.
Isso, mais do que traição seja ao que for, é inteligência – e não, não é resultadismo, é análise fria e descomprometida. Gosto mais de equipas que queiram ter bola, mas preciso de saber perceber a lógica das que não a têm. “E se de Bruyne tivesse marcado no tiro que meteu sobre a barra, quase no fim, com a baliza aberta, mudavas a análise?”, perguntam-me os que gostam de ver o futebol como uma forma de contrariar os comentadores, por um dia aliados dos que acham que o jogo é uma luta maniqueísta do bem contra o mal, sendo o bem o que se faz com a bola e o mal aquilo que tem de se fazer sem ela e que depois se agarra a nós como o cheiro dos sacos de lixo fermentado quando vamos levá-los ao contentor. E a resposta é não. O jogo teria sido o mesmo, um exercício de resistência de um lado e domínio incessante e às vezes avassalador mas poucas vezes inteligente do outro. A entrar, essa bola vinha alterar o resultado mas não o argumento. O futebol não é como os filmes. É o exato oposto. No cinema ou na BD, já sabemos que o Superman vai derrotar o Lex Luthor e que Flash Gordon baterá o impiedoso Ming. Vemos e lemos porque nos falta saber como. No futebol, o como pode ser muitas vezes igual que isso não impede o resultado de mudar.
O Manchester City continua a ser a melhor equipa da Europa, apesar de estar a sofrer na adaptação às exigências que lhe colocaram em 2023/24, nomeadamente na forma de ligar com Haaland. Gostar de futebol passa por entender e aceitar que, sobretudo nas provas a eliminar, nem sempre é a melhor equipa que ganha. Porque o Real Madrid foi melhor na adequação à realidade que a eliminatória exigiu, tal como tem sido sempre fortíssimo na forma de superar as adversidades que lhe têm sido colocadas por lesões, castigos e por um plantel que é curto nalgumas áreas. Essa lição de ‘realpolitik’ é tão válida como o compêndio de jogo posicional que permite a uma equipa acertar 846 de 920 passes que fez em 120 minutos.
Sinceramente, números, números e mais números o futebol não são números e muito menos estatísticas. Tive o privilégio de ontem á noite ter assistido en loco no Ethiad e garanto-lhe o futebol não são números.