Hino ao futebol alternativo
Começa amanhã a Taça de África das Nações, a mais aberta das competições do futebol mundial. Está toda a gente à espera de Marrocos, mas há vantagens que se perderam desde o Mundial.
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Um ano depois de ter sido a primeira seleção africana a atingir as meias-finais de um Mundial, deixando pelo caminho Espanha e Portugal, a equipa nacional de Marrocos terá na Taça de África das Nações, que amanhã começa, uma oportunidade para confirmar a hegemonia continental que deixou adivinhar no Qatar. Há, no entanto, uma série de fatores a contribuir para a redução das expectativas em torno dos comandados de Walid Regragui. O primeiro é o futebol propriamente dito. É que se no Qatar a equipa de Marrocos podia deixar-se ficar à espera dos adversários, montar as suas possibilidades em cima de uma organização defensiva forte e da entrega da iniciativa, na Taça de África não poderá fazer a mesma coisa. Nos cinco jogos até à meia-final do Mundial, com a França, Marrocos só sofreu um golo e foi precisamente naquele em que teve mais bola (ainda assim apenas 41 por cento da posse, com o Canadá). Em África, os marroquinos não serão outsiders mas favoritos: são, em 13º lugar, a seleção mais bem colocada no ranking da FIFA, sete posições à frente do Senegal, o campeão continental de 2021. E isso muda tudo. Como muda tudo o facto de esta competição decorrer na África subsaariana, parte do continente onde as dificuldades para os magrebinos são bem maiores do que no clima relativamente próximo do deles do Qatar. Desde o tricampeonato egípcio, em 2006, 2008 e 2010, que uma equipa do Norte de África não ganha na África Negra. E as últimas vitórias magrebinas (Tunísia em 2004 e Argélia em 1990) ocorreram em provas disputadas em casa. Por fim, há a questão político-motivacional. Muito do sucesso no Mundial de uma equipa de Marrocos cheia de jogadores com dupla nacionalidade (marroquina e do país europeu onde muitos até já nasceram) se deveu à motivação de mostrar qualidades aos que ao mesmo tempo os acolheram, ostracizam e oprimem – não a eles, que são privilegiados, enquanto futebolistas, mas aos cidadãos comuns que com eles cresceram. Ora se isso ainda funciona contra a Espanha, a França ou Portugal, muito dificilmente será sequer tema quando do outro lado estiverem Tanzânia, República Democrática do Congo ou Zâmbia, que são os adversários dos marroquinos na primeira fase. Tudo isso somado contribui para reduzir o favoritismo de uma equipa de Marrocos que, no campo, não perdeu qualidades, mas que será agora forçada a demonstrá-las outra vez no ambiente super-aberto que é o de uma CAN onde, além dela e dos campeões senegaleses, tem depois sete seleções arrumadas em 24 lugares do ranking mundial, do 28º lugar da Tunísia ao 51º do Mali, passando pela Argélia (30º), Egito (33º), Nigéria (42º), Camarões (46º) e Costa do Marfim (49º). Não se espera muito mais do que solidez defensiva das duas mais fortes entre as quatro seleções lusófonas presentes (Cabo Verde e Angola), mas haverá ainda assim portugueses a lutar pelo título. Rui Vitória comanda a equipa do Egito cuja maior força é mesmo o coletivo, o facto de ser o único candidato ao título cujo plantel é composto maioritariamente por jogadores que alinham no campeonato interno. E onde Salah fará de tudo para conseguir o troféu que nunca obteve. E José Peseiro dirige uma Nigéria cheia de avançados de classe mundial (Osimhen, mas também Lookman ou Chukuweze), à qual faltam depois defesas e guarda-redes. O Senegal de Mané defende o título ganho em 2021, a Costa do Marfim joga em casa, há ainda Camarões, Argélia e até o Gana, desastroso na última edição mas com talento de sobra para poder impor-se. O mês que vai entrar é um aborrecimento para os clubes europeus que perdem alguns dos seus jogadores mais importantes em altura fundamental da temporada, mas é um hino ao futebol alternativo que vale bem a pena seguir.
Japão favorito na Ásia. Hoje, um dia antes da CAN, arranca no Qatar a Taça da Ásia, a outra competição a tornar especial o mês que aí vem. Há menos jogadores da nossa Liga e, depois da demissão de Carlos Queiroz, substituído pelo espanhol Marquez Lopez na equipa da casa, só um treinador português, que é Paulo Bento, aos comandos dos Emiratos Árabes Unidos. E há um favorito claro, a seleção japonesa que chega à competição a voar, com dez vitórias seguidas, incluindo um 4-1 à Alemanha e um 4-2 à Turquia, em Setembro do ano passado. A Coreia do Sul, a Austrália, o Irão e o próprio Qatar poderão tentar fazer sombra aos nipónicos, mas é seguro que a prova não será tão aberta como a africana. Tem, ainda assim, um aliciante extra: a possibilidade de se medir os progressos da Arábia Saudita comandada por Mancini na sequência da importação de tanto talento para a sua Liga. Esse será também o foco desta Taça da Ásia.
A influência de Eriksson. Os últimos dias foram marcados pela revelação por parte do sueco Sven Goran Eriksson de que sofre de um cancro terminal e que, na melhor das hipóteses, terá um ano de vida pela frente. O facto de haver dois Erikssons na história do futebol não deve levar-nos a esquecer a influência do primeiro, o que verdadeiramente contou. A contratação para a seleção inglesa, em 2001, faz a separação entre o Eriksson moderno e revolucionário e o Erksson acomodado e milionário. O que veio depois da experiência na equipa dos três leões foi risível – nono lugar na Premier League com o Manchester City, de onde saiu a apanhar 8-1 do Middlesborough, seleções do México e da Costa do Marfim, Notts County, Leicester City, Tailândia, Emiratos, China e Filipinas – e não bate bem com o início da história deste discípulo modernizador da escola zonal de Niels Liedholm. Quando Fernando Martins apresentou este sueco de 34 anos como substituto do húngaro Lajos Baroti, que tinha exatamente o dobro da sua idade (68), no Benfica, poucos foram além do facto de ele ter acabado de ganhar a Taça UEFA com o IFK Gotemburgo. Mesmo depois, não há muito quem vá além do seu folclórico panamá publicitário, da abertura da pista nórdica, com as contratações de Stromberg e de Manniche, e mais tarde de Thern, Magnusson ou Schwarz, ou do regresso dos encarnados às finais europeias, com a derrota na Taça UEFA de 1983 face ao Anderlecht. Mas Eriksson foi o motor de uma das últimas revoluções no futebol português. Mudou o jogo em termos táticos, com a adoção da zona total, como o mudou em termos de mentalidades, com a simplificação das tarefas ou a abolição dos estágios para os jogos em casa. Saiu para a AS Roma ao fim de dois anos mas o crescimento do FC Porto de Artur Jorge e depois Tomislav Ivic levou a que continuasse a ser visto na Luz como um Messias que já não tinha capacidade para ser. Voltou cinco anos mais tarde, como símbolo de uma política de investimento massivo que ainda levou o Benfica à sua última presença numa final da Taça dos Campeões Europeus (0-1 com o Milan, em 1990) mas que terá estado na origem do estoiro que levou à grave crise do final da década, primeiro com rescisões de jogadores que não recebiam salários e depois com o depauperar do plantel, os 0-7 de Vigo e as ausências consecutivas das provas europeias. Dizem que já aí não era o mesmo. Mas vale a pena recordar o outro, o revolucionário. Porque foi esse que fez o futebol português andar para a frente.
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