Haller e o neocolonialismo
O marfinense queixou-se por lhe perguntarem se preferia ficar no Ajax a jogar a Taça de África. Os clubes vão queixar-se todo o mês, por perderem jogadores para as seleções em fases decisivas.
Sebastien Haller, o melhor marcador da fase de grupos da Liga dos Campeões, foi expressivo na forma como manifestou o desagrado quando lhe perguntaram se alguma vez lhe passara pela cabeça optar por ficar no Ajax durante o mês de Janeiro, em vez de ir para os Camarões, onde jogará a Taça de África das Nações pela Costa do Marfim. “Isso é uma falta de respeito por África! Você faria essa pergunta a um europeu antes do Campeonato da Europa? Claro que vou jogar a Taça de África!”, disse o marfinense, um entre dezenas de jogadores de que os clubes europeus vão ver-se privados durante este mês, não só por causa da Taça de África mas também devido às eliminatórias atrasadas do Mundial, que se realizarão de 27 de Janeiro a 2 de Fevereiro na Ásia e por toda a América. Mas a pergunta, que Haller quis insinuar ser de cariz racista ou até alguma forma rebuscada de neo-colonialismo, não é estúpida. O que é estúpido é que se joguem torneios de seleções em datas nas quais há campeonatos a decorrer.
Em Portugal, o caso nem tem sido muito badalado, pois não teremos assim tantos jogadores fundamentais de clubes grandes presentes na Taça de África. Provavelmente até se falará mais do tema lá para o final do mês, quando for necessário libertar os convocados para as eliminatórias do Mundial, entre os dias 24 de Janeiro e 2 de Fevereiro, levando-os a perder a 20ª jornada do campeonato e toda a Final Four da Taça da Liga. Aí sim, veremos os nossos clubes a contorcer-se e a lamentar a calendarização, até devido aos contratempos que estas mudanças de contexto provocam, que tentei explicar detalhadamente nesta reportagem. O FC Porto pode receber o Marítimo sem Uribe, Díaz, Corona e Taremi, o Sporting enfrentará a fase decisiva da Taça da Liga e eventualmente visitará a Belenenses SAD sem Coates e Ugarte, e o Benfica terá de jogar a Final Four e possivelmente receber o Gil Vicente sem Otamendi e Darwin. Na Taça de África, que este ano volta a ser jogada no Inverno, onde era tradicional, e que se prolongará por quatro semanas, dos clubes grandes só lá estão Zaidu e Nanu, do FC Porto. Depois, da I Liga, ainda por lá andam Sacko, Alfa Semedo e Mumin (Vitória SC), Yusupha (Boavista), Fali Candé (Portimonense) e Sori Mané (Moreirense), além mais jogadores das equipas B e sub23 e de vários elementos de clubes que jogam a II Liga, a Liga 3 e até o Campeonato de Portugal.
“Detesto ter de escolher entre o meu clube e o meu país”, aquiesceu Haller na conferência de imprensa em que lhe fizeram a tal pergunta, mostrando que afinal de contas o problema não tem uma resolução assim tão evidente. E o sentimento será seguramente partilhado por outras mega-estrelas que vão estar nos Camarões durante boa parte deste mês – ou até pelo mês todo, se as suas seleções se saírem bem e forem continuando até à final, que se joga a 6 de Fevereiro. Como se sentirão Salah, Mané e Keita, que deixam o Liverpool FC a onze pontos (com um jogo a menos) do Manchester City e perderão de certeza duas jornadas da Premier League, se voltarem a Inglaterra com a questão do título já definitivamente arrumada? E atenção, que se são só duas jornadas foi porque a Premier League, tal como a Liga Espanhola, a Serie A italiana ou a Bundesliga, deixou vago o fim-de-semana de 29 e 30 de Janeiro, prevendo conflitos devidos à chamada de jogadores para as qualificações do Mundial. Tal como já aconteceu, por exemplo, na janela internacional de Setembro, onde houve jogadores a faltar às convocatórias e outros multados pelos clubes por terem ido, sendo depois forçados a ficar em quarentena no regresso.
É evidente que esta época, tal como a anterior, é especial, por causa dos efeitos da pandemia. O adiamento dos jogos que as seleções deviam ter feito na Primavera de 2020, somado às maratonas irracionais que são as qualificações na América do Norte, do Sul e na Ásia (cada seleção faz entre 18 a 20 partidas, quando na Europa se jogam entre oito a 12), levou a que os calendários tenham sido insuflados com janelas internacionais em momentos que não só não são habituais como são desaconselhados, devido ao desgaste e às variações climáticas extremas que os jogadores vão ter de enfrentar. Esta é também a altura que a FIFA e a UEFA escolheram para se digladiarem na guerra pelo domínio do negócio, uma avançando com a proposta do Mundial de dois em dois anos, a outra ameaçando com o convite às seleções sul-americanas para se integrarem na Liga das Nações. Seja quem for a ganhar a corrida, o que é importante é que se defina um calendário global mais equilibrado e sem conflitos. Porque se Haller tem razão em queixar-se por lhe perguntarem se não preferia ficar no clube em vez de ir jogar pela seleção, os clubes também não têm de investir milhões em futebolistas que não estão disponíveis em alturas fundamentais da época, arriscando assim falhar objetivos que são fulcrais para lhes pagar.