Guardiola contra os guardiolistas
Alguns dos mais fundamentalistas do guardiolismo não entenderam ainda que aquilo que defende a religião que advogam não são dogmas mas sim a capacidade para os contrariar.
Se há coisa que me convence do génio de Pep Guardiola é a forma como o treinador catalão arrasa sucessivamente uma série de dogmas e força o dobrar da já de si sinuosa coluna vertebral do séquito de admiradores incondicionais da sua religião, o guardiolismo. O maior defeito dos guardiolistas mais fanáticos é o de acharem que só há uma maneira de jogar. Que fulano não serve porque é muito físico e o guardiolismo é o elogio dos mirraditos. Que sicrano não serve porque corre muito e o guardiolismo é o elogio dos que pensam antes de correr. As frases feitas, que ficam bem a qualquer um e até lhes enchem o peito de uma auto-proclamada superioridade intelectual e poética, são o maior erro dos guardiolistas. Porque a virtude principal de Guardiola, além de ser um trabalhador incansável e obsessivo, é a capacidade para pôr sempre tudo em causa, para não só construir as equipas à medida dos desafios que se lhe vão colocando como, com o domínio reiterado do ambiente e do contexto, até se dar ao luxo de corrigir o rumo em andamento – e os vídeos acerca desta última parte deviam vir acompanhados de uma advertência a dizer “Não tentem isto em casa”, porque este é o truque mais perigoso para um treinador. Do que vos falo é da integração de um jogador diferenciado como Haaland, quando tudo o que é livro sagrado da religião guardiolista vos dirá que ele não faz sentido naquele contexto. Quando Guardiola ganhou o triplete – Champions, Liga e Taça do Rei –, em 2011, a equipa do FC Barcelona era o elogio de um paradigma, o de que não é preciso ser grande para se ser craque. O ataque tinha Messi (1,70m), Pedro (1,67m) e Villa (um matulão de 1,75m). A meio-campo apareciam Xavi (1,70m) e Iniesta (1,71m), dois magos do passe que eram enquadrados por Mascherano (1,74m) e pelas chegadas de Busquets, cujo 1,89m o fazia parecer desenquadrado na fotografia mas não na forma de tocar a bola. O que aquela equipa nos disse foi que se podia ganhar do rés-do-chão, desde que se aplicassem ideias coerentes com os jogadores de que se dispunha. Não foi, jamais, que era impossível vencer do quinto ou do sexto andares, como começaram a apregoar os maiores fundamentalistas do guardiolismo. O próprio Pep já tinha tentado integrar Ibrahimovic, um ano antes, quando quis introduzir uma variante ao jogo curto e procurar um avançado que lhe garantisse uma plataforma de apoio em jogo longo. E fracassara, fosse porque não era o momento, porque Zlatan não estava preparado para aquele nível de complexidade, porque Messi não aguentou os arrufos que o sueco promovia para chamar a atenção para si mesmo ou porque o próprio treinador não dominava ainda o contexto deste futebol. Agora, com Haaland, não é assim. O primeiro golo do Manchester City ao Arsenal, nos 4-1 que ontem começaram a virar a Premier League para um tricampeonato do City, mostra o que é o guardiolismo. É a capacidade de introduzir novas ideias se na equipa se introduzem novos jogadores. Se o adversário pressiona a saída de bola, uma das vias de saída é a busca do espaço imenso que representa o peito de Haaland, em movimento de aproximação. Se um dos centrais adversários acompanha o norueguês nesta aproximação – e aí esteve o erro de Holding, que devia ter sido mais fiel ao apelido e devia ter esperado... – abre-se o espaço para o toque em direção a De Bruyne e uma avenida para a progressão deste a caminho da baliza. O Manchester City de Pep Guardiola é diferente com Haaland – e mal seria se não fosse. E a essência do guardiolismo é a construção de uma forma de jogar que bata certo com os jogadores que se tem. Se tens Messi, Pedro, Xavi e Iniesta, tocas e retocas. Se tens Haaland, aceleras o processo.
O ovo ou a galinha? Esta constatação pode levar-nos a duas conclusões perigosas. A primeira é a de que o bom treinador é aquele que adapta as suas ideias aos jogadores de que dispõe. Não é. O bom treinador é aquele que tem uma ideia de como chegar ao sucesso e identifica ou contrata jogadores para a porem em prática. É evidente que o treinador que adapta as suas ideias aos jogadores de que dispõe será sempre mais bem-sucedido do que aquele que não consegue sequer ter ideia nenhuma, mas o que nos mostra o City é que as ideias evoluem num sentido mais proativo do que reativo. Aqui sabe-se bem quem nasceu primeiro, se foi o ovo ou a galinha. A segunda conclusão perigosa é a de que o bom treinador é aquele que muda muito, que consegue introduzir nas suas equipas uma elevada componente estratégica sem perder eficácia técnica ou tática. E aqui é importante termos em conta mais uma série de variáveis, que vão do tempo de trabalho à capacidade dos jogadores para se adaptarem às alterações sem perderem qualidades. Já vimos que Guardiola mudou processos, introduzindo um ponta-de-lança mais físico e capaz de ocupar mais espaço na frente, por oposição ao “falso nove” que parecia ser base da sua doutrina, o que veio ter repercussões violentas no modelo de jogo. Mas o catalão tem ido mais longe, mudando sistemas de jogo para jogo, alterando as funções de jogadores consoante joga com quatro ou três atrás, recorrendo à versatilidade de gente como Bernardo Silva ou até, imagine-se, Stones. Os leigos olham para isto e acham que Guardiola é bom porque “tem um plano B”. E é evidente que ele tem um plano B, um plano C, um plano D e por aí a fora. Sobretudo porque tem sete anos de trabalho com um lote de jogadores que aperfeiçoa a cada época, deixando cair aqueles que julga já não ser capaz de melhorar e mantendo aqueles cuja inteligência lhe garante evolução constante. Guardiola é bom porque tem um Plano B, mas tem um Plano B porque teve as condições para o trabalhar. E o problema da maior parte dos treinadores que buscam com afinco o Plano B é que as suas equipas ainda nem sequer dominam o Plano A.
E agora, Arsenal? O Arsenal vai perder a Premier League que parecia ter no bolso. Mas fez mais do que se esperaria desta equipa que, recorde-se, na época passada nem à Champions conseguiu chegar. Se no início da temporada falassem aos adeptos num segundo lugar bem à frente do terceiro, eles assinariam de cruz, o que é sinal de que também ali se trabalhou bem. Mas no final faltaram coisas. Faltou profundidade de plantel, faltou experiência em batalhas como a de ontem. Mikel Arteta tinha ao seu dispor o plantel mais jovem da Premier League – e a boa notícia é a de que para o ano todos aqueles jogadores terão mais um ano e saberão já o que é jogar para o título. Havendo capacidade para atrair reforços do nível de Zinchenko ou Gabriel Jesus, o próximo ano pode trazer mais evolução.
No próximo ano terá mais dificuldades, pq as outras equipas tbm estarão mais fortes. Mas creio que serão com certeza uma equipa batalhadora.