Foi futebol a acontecer
A vitória do Real Madrid sobre o Manchester City não tem explicação racional. Não foi a equipa, não foram os jogadores, não foi o treinador, não foi o público. Foi só futebol a acontecer.
Podem chamar-lhe Superliga, podem chamar-lhe aquilo que quiserem. Taça dos Campeões ou Liga dos Campeões é que fica mais difícil, porque mais uma vez vamos ter dois finalistas que não foram campeões dos seus países – aliás, só três dos últimos dez clubes presentes nas decisões finais o tinham sido. De qualquer modo, isso acaba por ser irrelevante, face a mais uma hipótese que tivemos de ver um dos mitos da história do futebol, o fantasma de Santiago Bernabéu a empurrar o Real Madrid para um feito histórico e claramente fora do seu alcance. A vitória – ou melhor, a forma como ela apareceu – dos madridistas sobre o Manchester City, ontem à noite, por 3-1, após prolongamento, não tem nenhuma explicação racional. Não foi a equipa, não foram os jogadores, não foi o treinador, não foi o público. Foi só uma coisa. Foi futebol a acontecer.
Ontem, até aos 90 minutos, depois de ter perdido a primeira mão por 4-3 e estando a perder a segunda por 1-0, o Real Madrid não tinha enquadrado um remate com a baliza de Ederson. O Manchester City tinha a eliminatória absolutamente controlada e Grealish acabara de ver Mendy, primeiro, com uma inacreditável interceção em cima da linha, e Courtois, depois, com uma defesa feita com a ponta dos pitons em que acaba a sua interminável perna esquerda, negar-lhe um segundo golo que mandaria toda a gente para casa com aquela sensação chata e burocrática de mais um dia no escritório. O Real Madrid estava absolutamente rendido e encostado às cordas. Ancelotti já tinha confirmado que não conseguia mandar no jogo com a bola e optara em vez disso por preencher a área e cruzar como se não houvesse amanhã. Os seus controladores de jogo – Kroos, Modric, Casemiro – tinham ido todos embora, foram os primeiros a sair, trocados por gente que pudesse tirar o máximo dos raros momentos em que o adversário emprestava a bola. Gente que “desbordasse” – não conheço expressão tão feliz em português... – pelas bandas e cruzasse e gente que preenchesse a área à espera de um milagre.
Afinal de contas para que é que pagamos bilhete? Para que é que temos Pay TV? Para ver a melhor equipa controlar jogos com bola e mostrar em campo que com ela não se brinca? Que pobreza de espírito! Ainda há dias sorri quando vi um dos meus mestres nisto do jornalismo, o João Querido Manha, criticar – o João critica muito, critica sempre, está a transformar-se num autêntico Zé Pereira*, e isso não é mau... – no Twitter essa tendência dos comentadores televisivos de futebol irem à poesia de cordel buscar expressões idiotas para explicar aquilo que não conseguem justificar. Mas às vezes – muito menos do que aquelas em que ouvimos gente agradecer aos céus ou defender a pureza estética e estilística de uma ação – há coisas que não se explicam. E uma delas é o espírito do Bernabéu. Porque o Real Madrid, ontem, já estava morto. Era um daqueles zombies dos filmes antigos, quando aos zombies ainda não se lhes tinham descoberto super-poderes para tornar as narrativas mais interessantes. Já só chutava bolas para a área. E foi para apanhar uma delas, ainda por cima mal dirigida, que Benzema se esticou todo, devolvendo-a a Rodrygo, que empatou o jogo. Estávamos a entrar nos descontos.
E foi aí que apareceu o espírito de Santiago Bernabéu. Dizia Juanito, que era um dos heróis da equipa (até fraquita) do Real Madrid que celebrizou as “remontadas”, ganhando a Taça UEFA de 1986, depois de perder vários desafios da primeira mão no terreno dos adversários – Borussia M’Gladbach, Inter Milão... –, que “90 minutos no Bernabéu são uma eternidade”. Os de ontem pareciam uma eternidade, sim senhores, mas no sentido de que tinham sido um aborrecimento. Porque o que se vira até ali era uma equipa claramente mais forte a controlar e outra claramente mais fraca a mostrar a sua incapacidade. O futebol, no entanto, tem esta faceta mental. Rodrygo é brasileiro, tem 21 anos, não viu a Taça UEFA de 1986, mas já deve ter ouvido falar nela. E há-de ter uma ideia do historial do clube, até mais de alturas em que no Real Madrid jogavam os Galácticos, os Zidanes, os Figos, os Ronaldos, e não malta muito mais modesta, como a que estava em campo ontem à noite. Ora isso, aparentemente, foi o suficiente para o fazer acreditar que tudo o que se tinha visto nos 180 minutos anteriores era falso e que o que ia prevalecer ali era o tal espírito de Santiago Bernabéu. Ora acreditar é um passo importante para fazer – e isso viu-se no lance do segundo golo. Sim, o cruzamento de Carvajal é excelente, mas sofreu um desvio em Asensio. E depois nem se reconhece a Rodrygo o talento de cabeceador exímio – e foi preciso ser exímio para corrigir o movimento e cabecear aquela bola – nem a Ederson a lentidão de reação que o levou a deixar passar a qualificação quase pelo meio da baliza.
Depois, o que aconteceu foi futebol. Uma equipa “sufocou”, como disse Pep Guardiola no fim. A outra empolgou-se. No prolongamento não se jogou muito, mas o Real não queria que se jogasse. Pela primeira vez na eliminatória conseguiu mandar no ritmo do jogo. Porque do outro lado, o adversário tinha congelado. No futebol, nem sempre ganha a melhor equipa. O Real Madrid talvez não seja melhor equipa do que o Paris Saint-Germain, não é melhor equipa que o Chelsea e definitivamente não é melhor equipa que o Manchester City. Mas eliminou-os a todos e está na final com toda a justiça. E esta possibilidade de os piores ganharem aos melhores é uma das coisas que fazem do futebol o fenómeno que ele é.
* – O Zé Pereira, que já faleceu, era subeditor do João Querido Manha no caderno de desporto do Expresso. Foi muito com os dois que aprendi a profissão, foi graças a eles que pude saber o que era fazer jornalismo e reportagem, numa altura em que se ia aos sítios e se falava com as pessoas. E os dois organizavam-se sempre numa lógica de “polícia bom-polícia mau”, em que o João elogiava e o Zé chateava. A coisa funcionava bem.
Como adepto do City e do Barcelona há bem mais de 40 anos o António pode imaginar como estou hoje...
Sim hoje em dia é fácil ser-se adepto do City mas eu já venho das ligas secundárias, da terceira divisão, e isto apenas porque na altura que descobri o Manchester City gostei muito do equipamento.
Falando do milagre de ontem...
Tendo em conta que de certa maneira o Real teria que ir para cima dos ingleses, eu já sabia que não poderíamos vir a ter grande jogo de futebol.
Em condições normais o Real não consegue encostar o City ás cordas. E assim foi.
De facto o jogo e a eliminatória podiam ter sido resolvidos com alguma normalidade mas quando vi aquelas duas bolas a não entrar fiquei desconfiado...nao por maldição nenhuma mas porque a acontecerem coisas daquelas, num qualquer lance final, fortuito e desesperado o Real poderia ter a sorte de marcar. E teve. Duplamente.
Como eu hoje tenho dupla azia, ver o City eliminado e o Real na final.
P S - Ainda bem que a final não é no Barnabeu.
🙂
Creio que o Real seja uma equipa talhada para o mata-mata e o City para um formato de pontos corridos. Portanto não deixa de ser curioso que o Real seja uma das equipas que mais defende um formato (o da Super Liga Europeia) que provavelmente não a beneficiaria.