Firmes e hirtos
O Sporting-FC Porto foi uma questão de “eficácia” ou a vitória “da raça que nunca se verga”? Foi as duas coisas. Mas ambas as explicações são redutoras ou empregues de uma forma inadequada.
Houve muitos pontos de contacto entre o Sporting-FC Porto de ontem e a final da Taça da Liga, que as duas equipas jogaram no final do mês passado. A começar pelo resultado, que foi outra vez favorável aos dragões, e a continuar na forma como os leões deixaram esfumar, à medida que o jogo ia decorrendo, uma superioridade que chegaram a parecer poder esboçar. Pode haver quem se sinta tentado a alegar que não foi o FC Porto que ganhou os dois jogos, que foi o Sporting que os perdeu. É a conversa da eficácia, dos detalhes, que não é de todo estapafúrdia, pois em ambos os casos a equipa de Rúben Amorim até foi estatisticamente superior, como pode ver-se pelo índice de golos esperados (xG) da GoalPoint, por exemplo. Vou tentar explicar o jogo de ontem na crónica analítica, que só publicarei ao fim da tarde de hoje, mas desde já vos digo que essa ideia da eficácia me parece tanto mais redutora quanto mais olho para a sucessão de resultados entre estas duas equipas. O FC Porto ganhou os cinco últimos jogos com o Sporting. O Sporting venceu apenas uma vez nos últimos dez confrontos. Aqui entra a outra conversa, em sotaque do norte: a da capacidade de sofrimento, da “raça que nunca se verga”. Também não é estapafúrdia, ainda que para ser verdadeira se lhe deva retirar a componente política e de revolta contra o Mundo de que se constroem o balneário do Dragão e o sentimento do “Somos Porto” que é tão comum entre jogadores e adeptos. O que esta equipa do FC Porto tem demonstrado é uma força que não se verga, sim, mas que não se verga e se mantém firme e hirta face àquilo que é verdadeiramente importante, que não são os jornalistas nem os comentadores, mas sim as vicissitudes dos jogos. Muito do sucesso da equipa que neste momento tem em sua posse os quatro títulos nacionais – Liga, Taça de Portugal, Taça da Liga e Supertaça – vem da força mental que lhe permite manter as referências, as ideias e os estados de alma mesmo quando os jogos não lhe correm como ela esperaria. Foi com base nessa solidez, nessa competitividade, que o FC Porto ganhou estes dois últimos jogos contra o Sporting, fazendo suceder a duas primeiras partes em que até foi ligeiramente inferior dois segundos tempos em que impôs a sua capacidade defensiva, o poder de anular as armas de um adversário demasiado espaventoso. Há muitas receitas para se fazerem equipas vencedoras e, sim, essa é uma delas. O Benfica de Roger Schmidt vai ter de contar com o FC Porto de Sérgio Conceição na luta pelo título.
Os energúmenos e as instituições. O Leeds United-Manchester United de ontem foi marcado pelos cânticos entoados por adeptos da equipa da casa acerca do desastre aéreo de Munique, que em 1958 matou oito jogadores do adversário de agora – e rival de então – e deu origem ao nascimento da lenda dos “Busby Babes”. Lá como cá. Não compro essa ideia de que são os adeptos portugueses os culpados do estado em que está o nosso futebol, porque atrasados mentais há-os de todas as cores e em todas as latitudes. A diferença fazem-na as instituições. No final do jogo, os dois clubes emitiram um comunicado conjunto que descreveu os cânticos como “completamente inaceitáveis”, prometendo ainda trabalhar com os responsáveis dos seus grupos de adeptos e com a Premier League no sentido de os erradicar. Ninguém se vai esconder atrás de um precedente para justificar o que é injustificável. E isso, sim, funciona como dissuasor. Muito mais do que as bancadas vazias protegidas por lei ou as zonas especiais onde guetizamos os radicais. Tudo o que esta malta precisa é de um exemplo vindo de cima, dos chefes da tribo. É tudo aquilo que não têm por cá.
Enzo-Félix-Porro. O famoso passe picado de Enzo Fernández apareceu na Premier League à segunda partida e foi de imediato compreendido por João Félix, há mais tempo no Chelsea, mas também a fazer o segundo jogo, por causa da suspensão longa que se sucedeu ao cartão vermelho que viu no primeiro. Deu golo, mas não chegou para ganhar e mal bastou para um empate que realça igualmente as contradições de que o Chelsea não se livrou com a entrada dos reforços. No Tottenham, Porro fez uma entrada calamitosa, um pouco semelhante à que tinha protagonizado em Alvalade – quem quiser que vá ver a prestação defensiva dele no jogo com o Lask Linz, em Outubro de 2020. Nessa altura, muitos de nós terão pensado o que Tim Sherwood, ex-internacional e ex-treinador do Tottenham, disse agora na Sky Sports, depois da derrota pelo mesmo resultado (1-4) com o Leicester City: “Este tipo é tão mau...” Não era. O problema é que o juízo definitivo, por mais precipitado que seja, está cada vez mais em voga. O juízo elaborado e explicativo não tem cabimento na modernidade. As pessoas não querem explicações nem ponderação. Não têm tempo nem paciência, antes de deslizarem o dedo no ecrã e passarem ao próximo Reels ou ao próximo TikTok. Querem verdades totais e absolutas, por mais que elas sejam precipitadas – e até isso é bom, porque volta a dar assunto quando for para confrontar o julgador com o erro de julgamento. E esta cultura do imediato também tem responsabilidade no estado de sítio permanente em que vivemos, nesta nossa tendência para radicalizar de que falei no Último Passe deste fim-de-semana.
Um Real eterno. Podia sentir-me tentado a escrever que se há coisa que não muda é o Real Madrid. Continua a ser com Valverde, Tchouameni e Vinicius o que era com Modric, Ronaldo e Benzema – e sim, sei que dois deles ainda lá estão... –, com Raul, Mijatovic e Roberto Carlos ou com Gento, Puskás e Di Stefano. São oito títulos de campeão do Mundo, contando as Taças Intercontinentais. Mas até o Real Madrid é um fruto da modernidade, que cinco dos seus oito títulos mundiais foram conquistados nos últimos dez anos, nos dez anos que impuseram uma barreira financeira entre os sul-americanos e a glória mundial. Podemos até enganar-nos e dizer que se o Real Madrid ganhou cinco Mundiais em dez anos – e portanto cinco Ligas dos Campeões, o que parece bem mais difícil –, mas se ao mesmo tempo está a deixar fugir o FC Barcelona na Liga Espanhola, então os relatos acerca da supremacia imparável da Premier League são tão exagerados como eram as notícias sobre a morte de Mark Twain. Mas não. O que é imutável e eterno no Real Madrid é a sua capacidade para ganhar finais. O que a modernidade lhe deu foi a radicalização desse mito, a noção de que é imparável na sua bestialidade. Porque o que a modernidade nos traz é essa noção de que os bons são muito bons e os maus muito maus. E o Real Madrid, já se sabe, é muito bom.