F80 (2): A popularização do futebol
A democratização do futebol levou ao nascimento de clubes e mais clubes, entre os quais os que ainda hoje são vistos como os três grandes.
O futebol apresentava, face a outros desportos em voga no final do século XIX, algumas vantagens claras. Ao contrário da tauromaquia, todos podiam nele participar, em vez de se limitarem a observar de fora um mundo absolutamente inatingível como era o dos toureiros. Ao contrário do ciclismo, da caça ou do ténis, não era necessário gastar rios de dinheiro para o praticar: assim que as bolas começaram a vulgarizar-se, este passou a ser um desporto acessível a todos. E se o início nasceu da iniciativa de alguns jovens de alta sociedade, depressa o futebol se vulgarizou, chegando às escolas, originando um turbilhão de novos clubes e despertando as classes mais desfavorecidas para a prática da actividade física e para a distracção.
O futebol dos ensaios de Belas, da Parada ou do Campo Pequeno estava condenado, como muito bem reconheceu Guilherme Pinto Basto a “O Século”, em 1938, quando aquele jornal promoveu uma competição de “fair-play” para assinalar os 50 anos da introdução da modalidade em Portugal. “No meu tempo jogávamos apenas por desporto. Era uma brincadeira. Jogava-se entre pessoas que já mantinham uma relação de amizade e de cortesia. Tínhamos todos condição e educação aproximadas. Não havia, propriamente, luta. Depois, a enorme expansão que o ‘football’ tomou, alargando-se a todas as camadas sociais, devia, evidentemente, diminuir mais ou menos o espírito desportivo, que requer uma cultura e educação que, infelizmente, não existe entre as camadas populares”, referia o pioneiro, fazendo-o, nas palavras do jornalista que o entrevistava, “com um sorriso bondoso”.
Os colégios foram os primeiros adoptar este novo desporto. Na Casa Pia, Francisco Simões Margiochi, provedor de 1889 a 1904, introduziu a prática do futebol nas classes que tutelou, criando uma série de jogadores muito razoáveis que, em Janeiro de 1897, haveriam de impor a primeira derrota aos ingleses do Carcavellos, no seu próprio campo da Quinta Nova, por 2-0. Mas o Colégio Lisbonense, igualmente conhecido como Colégio Vilar (por pertencer à família com o mesmo nome, de onde saíram alguns dos pioneiros da modalidade em Portugal), o Colégio Nacional e o Colégio Militar também tiveram o seu quinhão na democratização do futebol, na sua abertura às classes menos favorecidas da sociedade.
Ora o espírito do futebol é o “association”, pelo que onde quer que houvesse rapazes interessados em jogar, naturalmente apareceram clubes. Não eram, no início, clubes organizados como os que conhecemos hoje: muitos deles fundavam-se e extinguiam-se a uma velocidade vertiginosa, de acordo com a disposição do momento dos seus membros, que ora lhes apetecia mais jogar com estes amigos, ora com aqueles, ora não lhes apetecia jogar de todo. E o primeiro de todos os clubes de futebol a nascer em Portugal foi o Lisbonense, fundado em finais de 1889 por Henrique, Afonso, Carlos e Alexandre Vilar e que depressa passou a contar com a colaboração dos irmãos Pinto Basto. Por essa altura, já os trabalhadores britânicos da Eastern Telegraph Company se haviam congregado no Carcavelos Club, principal potência do jogo na cidade e campeão de Lisboa nos três primeiros anos da competição (1906-07, 1907-08 e 1908-09).
No mesmo ano de 1889, o Real Ginásio Clube Português – que já existia desde 1875 – deixou-se também contagiar pelo novo desporto e pode hoje gabar-se de duas coisas. A primeira, incontroversa, a de, por intermédio dos seus sócios Carlos Xafredo (depois director do jornal “O Sport”) e Ricardo Oakley, ter traduzido para português as regras do jogo. A segunda, a de ter sido a primeira equipa de clube a apresentar-se em público, o que inquestionavelmente fez no Campo Pequeno, em 1889. Mais polémico é que o facto leve os seus historiadores a reivindicar para o Ginásio a introdução do futebol em Portugal, remetendo o anterior desafio entre portugueses e ingleses para a categoria de ensaio, não mais importante que os da Camacha, de Belas ou da Parada. É uma teoria que, contudo, não colhe votos favoráveis fora dos muros da secular instituição lisboeta.
Nicolau de Almeida inventa o FC Porto
Foi preciso esperar quatro anos para aparecer concorrência aos pioneiros: em 1893 nasceram o Braço de Prata, fundamentalmente formado por ingleses e igualmente detentor de uma equipa temível nestes primeiros tempos, o FC Esperança, o Estrela FC, fundado pelo Comandante Joaquim Costa, o Clube Tauromáquico, onde também passaram os irmãos Pinto Basto, e os 40 da Era. Nessa altura, contudo, já os portuenses davam os primeiros passos: apareceu primeiro a equipa de futebol do Oporto Cricket Club, feudo dos ingleses do Campo Alegre, e logo depois, o FC Porto, fruto do carácter empreendedor de António Nicolau de Almeida.
António já anteriormente se juntara ao irmão Fernando e a amigos, como Vieira da Cruz, Lacy Rumsey, Arthur Rumsey e George Dagge para fundar o Clube Excursionista e, depois, o Clube de Velocipedistas do Porto. Em terreno virgem para o associativismo, as coisas aconteciam sempre depressa, pelo que quando António se desloca a Inglaterra em viagem de negócios, já o CVP se fundira com o Velo Clube, para dar origem ao Real Velo Clube do Porto, instituição com sede no Palácio de Cristal e apoio do rei D. Carlos, que prometera aos promotores construir um velódromo onde estes pudessem organizar as suas corridas de bicicletas.
Contudo, António, na altura um jovem de 20 anos, veio diferente de Inglaterra. Por lá tomou contacto com o futebol e, de regresso ao Porto, trazia na bagagem bolas, botas e a ideia fixa de fundar um clube destinado à prática deste novo desporto. Assim fez: a 28 de Setembro de 1893, data do 30º aniversário do rei D. Carlos e do 28º da rainha D. Amélia, fundou o Foot Ball Clube do Porto. A notícia está no “Diário Illustrado”: “Fundou-se, no Porto, um clube denominado Foot Ball Clube do Porto, o qual vem preencher a falta que havia no norte do país de uma associação para os jogadores daquela especialidade. No segundo domingo de Outubro inaugura-se o clube oficialmente, com um grande ‘match’ entre os seus sócios, no hipódromo de Matosinhos”. E, de facto, a 8 de Outubro, o jogo entre duas equipas formadas por sócios do clube, uma capitaneada por Nuggent e outra por Mackenie, teve mesmo lugar. Os meses seguintes foram ocupados com desafios entre jogadores do Porto e outros de Aveiro, liderados por Mário Duarte, futebolista, tenista, ciclista, atirador e até toureiro de mérito.
O repto lançado a Guilherme Pinto Basto, para a realização de um desafio entre o FC Porto e o Lisbonense, acabou, por mediação régia, no primeiro jogo entre equipas representativas do Porto e de Lisboa, em Fevereiro de 1894. O futebol no Porto parecia lançado, mas acabou por chocar de frente com um casamento: em Agosto de 1896, António Nicolau de Almeida trocou votos com Hilda Rumsey, irmã de Lacy e Arthur, antigos parceiros do fundador do FC Porto em lides velocipédicas e futebolísticas. Ora sucede que Hilda não era grande adepta de futebol e de pronto pediu ao marido que a ele renunciasse, por ser perigoso e socialmente mal-visto. Daí que o próximo confronto entre Nicolau de Almeida e Guilherme Pinto Basto de que há notícia nos jornais date de Outubro de 1900. Voltou a ser um Lisboa-Porto, mas em ténis, em Cascais, e nele também participou o rei D. Carlos.
Do FC Porto só voltou a falar-se em 1906, por obra e graça de José Monteiro da Costa, o presidente da União dos Jardineiros do Porto que durante muitos anos, até à publicação da Fotobiografia do FC Porto, por Rui Guedes, fez figura de fundador do clube. Na origem, mais uma vez, uma viagem a Inglaterra, onde o futebol lançou sobre o visitante um feitiço inquebrantável. No Porto, o jogo era agora exclusivo de ingleses, que o praticavam no Oporto Cricket Club e no Boavista Foot-Ballers Club, antecessor do actual Boavista. Mas Monteiro da Costa convenceu os amigos com quem formava um grupo de convivas que se auto-intitulava Grupo do Destino a avançar para a ressurreição do FC Porto. Fez-se um minúsculo campo na parte que sobrava de uns terrenos arrendados à Companhia Hortícola Portuense, inventaram-se equipamentos, transformaram-se botas e vai de dar pontapés na bola. Apesar de ser republicano, Monteiro da Costa decidiu manter nas camisolas as cores (azul-e-branco) da bandeira monárquica, herdadas do FC Porto de Nicolau de Almeida, um frequentador assíduo da corte, que terá apoiado a iniciativa.
Sem campo para jogar
O campo da Rua da Rainha, do qual rapidamente saiu a Companhia Hortícola Portuense, permitindo-lhe adquirir medidas regulamentares, era o primeiro campo de futebol relvado do país, não fosse o líder da instituição o presidente da Associação de Jardineiros do Porto. Contudo, no plano dos resultados, as coisas não andavam famosas: os desafios contra os ingleses do Boavista FC saldavam-se por derrotas frequentes e pesadas. Precisamente o contrário do que sucedia em Lisboa com aquele que estava destinado a ser outro dos grandes emblemas do futebol nacional: o Benfica, nascido em Belém ainda sob a designação de Sport Lisboa, tinha bons jogadores, conseguia resultados extraordinários, mas viu a construção da identidade ameaçada pela falta de instalações próprias.
O Sport Lisboa nasceu a 28 de Fevereiro de 1904, na Farmácia Franco, situada na Rua de Belém, embora as suas raízes devam ser vasculhadas a 13 de Dezembro de 1903, data em que um grupo formado pelos Catataus (os irmãos Rosa Rodrigues) e por uma série de ex-casapianos, reunidos na Associação do Bem, venceram o Clube Internacional de Foot-Ball (CIF), na altura uma potência do futebol lisboeta. Desse resultado nasceu a vontade de fundar um clube, acto consumado na reunião da farmácia, após almoço no Café do Gonçalves. A acta da reunião inaugural, redigida por Cosme Damião, refere a presença de 24 elementos e nomeia José Rosa Rodrigues presidente, Daniel Brito secretário e Manuel Gourlade tesoureiro. E… ala para o primeiro treino, para o qual o pequeno pátio das traseiras da farmácia, onde muitos costumavam jogar, foi substituído por um terreno mais amplo, situado entre o Palácio da Quinta da Praia, residência do Duque de Loulé, e a linha de comboio que dava para o Tejo.
A escolha das cores do novo clube foi feita mais tarde, por José da Cruz Viegas, que optou pelo vermelho e branco, por serem fáceis de detectar. As primeiras camisolas saíram da Alfaiataria Nunes, quase paredes meias com a farmácia de Inácio José Franco, segundo conde do Restelo. A primeira sede, na Calçada da Ajuda, permitia guardar bolas e redes compradas em segunda mão aos pescadores da Trafaria, mas não resolvia um problema premente: onde jogar? A zona do Restelo foi sendo gradualmente ocupada: as Salésias tinham dono, as Terras do Desembargador serviam de picadeiro para a cavalaria, pelo que o piso ficava frequentemente em mau estado, e a CP exigiu somas exorbitantes pela ocupação do espaço entre a linha e a casa do Duque de Loulé, acabando o episódio na proibição de o clube ali treinar.
Mesmo assim, o primeiro jogo a sério do Sport Lisboa, a 1 de Janeiro de 1905, saldou-se por uma vitória (1-0) sobre o Campo de Ourique dos irmãos Del Negro. E o clube teve participações muito honrosas nos primeiros torneios inter-clubes organizados em Portugal: derrota por 1-0 contra o Lisbon Cricket nas meias-finais do Troféu Bronze Viúva Sena, em 1906, e segundo lugar no primeiro campeonato de Lisboa, em 1906/07, apenas atrás dos ingleses do Carcavelos, a quem impôs a única derrota (2-1) de toda a prova.
Insolúvel continuava o problema do campo para treinar, o que obrigava os jogadores a equipar-se e lavar-se em público, sem qualquer dignidade. A somar a isso tudo, António Couto partiu uma perna no desafio com o CIF, a contar para o I Campeonato de Lisboa; o guarda-redes Manuel Mora emigrou para a Argentina; José da Cruz Viegas abandonou o futebol em nome da carreira militar; e Fortunato Levy, capitão de equipa na histórica vitória sobre o Carcavelos, partiu para Cabo Verde. O desânimo era a nota dominante e, antes de encontrar acolhimento na Quinta da Feiteira, propriedade de um clube fundamentalmente dedicado ao ciclismo, chamado Grupo Sport de Benfica – de cuja absorção pelo Sport Lisboa nasceu, em 13 de Setembro de 1908, o actual Sport Lisboa e Benfica –, o Sport Lisboa chegou a suspender as actividades.
Isso ajuda a explicar a deserção de uma série de jogadores, em 1907: José da Cruz Viegas, Emílio Carvalho, Albano dos Santos, António Couto, António Rosa Rodrigues, Cândido Rosa Rodrigues, Daniel Queiroz Santos e Henrique Costa mudaram-se todos para o Sporting Clube de Portugal, clube mais novo, que tinha instalações de sonho, no Campo Grande, mas ao qual faltavam futebolistas de qualidade.
Um clube aristocrático
O Sporting Clube de Portugal nascera em 1 de Julho de 1906, mas também neste caso as origens remotas podem ser encontradas bastante mais atrás. Foi nas férias de Verão de 1902 que um grupo de amigos, onde pontificavam os irmãos Francisco e José Gavazzo, ao qual se juntaram Eduardo e Fernando Pinto Basto, fundou o Sport Clube de Belas. O objectivo era um jogo contra um grupo de Seteais, a efectuar durante a festa de Nossa Senhora do Cabo, a 26 de Agosto, com presença da família real. Ganharam os veraneantes, por 3-0, justificando uma entusiástica recepção no regresso ao retiro estival e a vontade de continuar a jogar futebol terminadas as férias, o que muitos foram fazendo na Ajuda, com a participação de mais convivas.
Parte dos membros deste grupo formaram o Clube Internacional de Foot-Ball (CIF), no final desse ano. Outros, como os irmãos Gavazzo, José Holtreman Roquette (neto do Visconde de Alvalade) e José Stromp, acabaram por reunir-se, em 1904, na fundação do Campo Grande Foot-Ball Clube, com sede no Solar Pinto e Cunha, ao fundo do Campo Grande, e campo de jogos no sítio das Mouras, que pertencia à quinta do Visconde de Alvalade. Ali se praticavam o futebol e o ténis, mas também se exercitava a actividade social, em “soirées” dançantes que chamavam a atenção da imprensa mundana, sempre atenta às actividades diletantes da alta sociedade, mas enfureciam os que achavam que o clube devia dedicar-se sobretudo ao desporto.
Daí à cisão foi um pequeno passo: em Abril de 1906, depois de uma discussão acerca dos convites para um piquenique, José Gavazzo demitiu-se. Com ele saíram o irmão e mais 18 sócios, entre os quais José Alvalade, que anunciou de forma dramática: “Vou ter com meu avô e ele me dará dinheiro para formar outro clube”. Assim se fez. Em Maio, José Gavazzo escrevia ao irmão, que estava em Paris: “Vamos fundar um clube, tendo por sócio fundador o Visconde de Alvalade, que está satisfeitíssimo”.
As obras para a edificação de um complexo desportivo – com um campo de futebol, courts de ténis, pista de atletismo, balneários, cozinha e até um jardim – nas terras do visconde começaram imediatamente, mesmo antes de o novo clube ter sequer nome. Estava definido que seria um clube privado e “exclusivista”, com os dez sócios fundadores a terem de votar a cada vez que alguém quisesse entrar (dois votos negativos acarretavam proibição), mas nada mais. José Alvalade atreveu-se a sugerir que se lhe chamasse Grande Sporting Clube de Portugal, mas com medo que começassem a confundi-lo com o Campo Grande, na assembleia de 1 de Julho de 1906 – hoje tida como a data fundadora – António Félix da Costa Júnior fez aprovar o nome que ainda perdura: Sporting Clube de Portugal.
Antes disso, contudo, já o clube elegera a primeira direcção, presidida pelo Visconde de Alvalade, que tinha o seu neto, José Alvalade, como vice-presidente, Frederico Seguro Ferreira como tesoureiro, José Gavazzo como primeiro-secretário e Henrique Leite como segundo-secretário.
O parque de jogos do Sporting foi inaugurado em Julho de 1907. Terá sido por essa altura que o clube, que até então equipara de branco – cor que se confundia com a do Campo Grande Foot-Ball Clube e que, por isso, não agradava aos sócios – adoptou o verde e o leão. Na verdade, foi ao contrário: porque achava que o leão rampante do brasão do conde de Pombeiro representava bem a pujança que antevia ao clube, José Alvalade pediu a D. Fernando Castelo Branco para o transportar para o emblema. O nobre, ele próprio um entusiasta da nova agremiação, anuiu, mas impôs que não fosse igualmente utilizado o fundo azul, que era cor de família. Daí que, após consultas com o primo José Roquette e António Rebelo de Andrade, José Alvalade tenha optado pelo verde, que simbolizava a esperança no futuro do Sporting.
Antes, a 3 de Fevereiro, o clube fizera o primeiro jogo, em Alcântara: um golo de João Vila Franca não impediu a clara derrota com o Cruz Negra, por 5-1. Na altura, qualquer jogo dava direito a desforra, pelo que, no mesmo terreno, exactamente três meses depois, o Sporting voltou a defrontar o Cruz Negra, desta vez ganhando por 3-1. Grande diferença de um jogo para o outro foi a incorporação dos dissidentes do Sport Lisboa na equipa de Alvalade. Nascia assim uma rivalidade secular.
Este artigo faz parte da série F80, destinada a celebrar o centenário das competições de futebol em Portugal, em 2022. Por aqui passarão biografias de jogadores, sempre em dia de aniversário, e a história de todas as épocas desde esse primeiro Campeonato de Portugal. Os primeiros nove artigos estarão disponíveis no plano gratuito. A partir de 7 de Novembro, para a eles aceder terá de se tornar assinante-pagante.