Eu, papagaio
A questão não é a de saber se Evanilson renderia a mesma coisa se tivesse jogado de início em Antuérpia, mas a de perceber se Taremi alguma vez faria o que fez sem um ponta-de-lança com ele.
Há uns anos valentes, havia um treinador, esperto que nem um alho e versado nas inúmeras vicissitudes do futebol português, que era conhecido por fazer propositadamente onzes que ele sabia que não eram os melhores, para poder brilhar e ganhar o jogo nas substituições. Era estratégia, mas era também a maneira de ganharem todos. O futebol entretanto progrediu, até no domínio da ciência médica, pelo que acredito no que disse ontem Sérgio Conceição acerca das razões que o levaram a deixar Evanilson no banco no início da partida com o Royal Antuérpia, que o brasileiro veio depois a resolver, com um hat-trick em 46 minutos, depois de substituir Wendel. “Duvido muito que ele de início desse a resposta que deu”, afirmou o treinador, que não só trabalha “diariamente com os jogadores” como tem acesso a relatórios sobre as suas condições físicas e mentais que nós, meros observadores, nunca conheceremos. “Estou preparado para ver os ‘papagaios’ dizerem que o Evanilson devia ter jogado a titular”, sublinhou o sempre provocador técnico do FC Porto. Pois bem: eu papagaio me confesso. Não digo que Evanilson devia ter sido titular, por não saber em que condições ele se encontra – e as lesões constantes que o têm afetado desde a época passada levam a que se compreenda a sua gestão com mil cuidados. Mas, tendo considerado que Evanilson foi o herói do jogo na edição do Futebol de Verdade Flash em que comentei os 4-1 do FC Porto em Antuérpia, prefiro centrar a análise no efeito que a entrada de Evanilson teve nas dinâmicas da equipa e, acima de tudo, no rendimento de Taremi, que deixou de ser o avançado de referência para passar a ter uma referência frontal perto dele. O FC Porto não mudou de sistema tático, continuou a mover-se a partir do 4x3x3 e o 4x2x3x1 (ou o 4x4x2), mas mudou as caraterísticas dos homens que preenchiam cada posição. André Franco deixou de ser terceiro médio, de alternar entre a direita e o meio, para ser defesa-esquerdo – e sentiu dificuldades com Muja, mostrando que a sua adaptação à nova posição está mais avançada nos momentos ofensivos do que quando toca a defender. Pepê deixou de ser segundo avançado para passar a ser terceiro médio, algo que não deixará Conceição totalmente confortável, por não ver nele as condições para o jogo sem bola que via em Otávio, o molde para a posição. E Taremi deixou de ser ponta-de-lança para passar a ser segundo avançado, passando a controlar o jogo a partir das entrelinhas, de onde construiu o lance do golo do empate, inventou o desequilíbrio que gerou o 2-1 e assistiu para o 4-1. Repito: não sei se Evanilson teria o mesmo rendimento se tivesse sido titular (nem Conceição o saberá, na verdade), mas tenho razões fortes para me armar em papagaio e para dizer que se não era ele devia ter sido Toni Martínez ou Fran Navarro ou Namaso, que no dizer do treinador, “também seriam capazes de pressionar e marcar”. A questão do ponta-de-lança e da acumulação de talento em seu redor é o principal dilema tático de Conceição por estes dias, porque quando começa a fazer o onze mete o guarda-redes, os quatro defesas, os dois médios-centro e só lhe sobram quatro vagas para Taremi, Galeno, Pepê, um terceiro médio e o tal ponta-de-lança. Por algum lado a corda tem de ceder. E no fundo do que se trata é de se perceber se Pepê pode fazer o que fazia Otávio ou se, não podendo, a equipa está pronta para sacrificar o melhor Taremi a uma missão que o limita. Como papagaio, é a pergunta que tenho a fazer.
Mais um teste de velocidade. O Sporting encerra hoje, em Sosnowiec, que fica a uns 70 kms de Czestochowa, a semana europeia das equipas portuguesas, num jogo contra o campeão da Polónia, o Rakow, que pode ser visto como uma espécie de teste de velocidade ao projeto. O Sporting de Rúben Amorim tem-se debatido sobretudo com dois tipos de problemas. Um é a gestão da escassez que é a base da ideia – se a sobrevivência depende da criação de mais-valias, é importante garantir que há espaço de afirmação para novos jogadores que possam vir a garanti-las, o que não se consegue atafulhando o plantel de opções. Este ano, com gente como Gyökeres ou Hjulmand, os leões já tentaram dar um passo em frente neste particular, arriscando um pouco mais na limitação da exiguidade, para que se a equipa acabar por cair isso se deva apenas à falta de quantidade e profundidade que é necessária e não à falta de opções de qualidade para uma primeira linha. O outro problema está relacionado com a pouca experiência competitiva de boa parte dos jogadores e até do próprio treinador, todos culpados de alguma incapacidade de gerir os momentos de desanuviamento, os futebolistas porque em campo vão deixando as coisas correr, como que à espera que elas se resolvam por si só, o treinador porque, fora dele, desvaloriza objetivos com declarações menos felizes ou com uma rotação que até pode ser vista como excessiva mas que é necessária para manter viva a gestão da escassez de que falava antes. Hoje, o Sporting tem pela frente uma equipa que é inferior, tal como eram o Sturm Graz ou, ainda mais, o Olivais e Moscavide. Além de somar uma vitória que é importante para começar já a pensar na qualificação, o jogo servirá para ver se foram feitos progressos na velocidade do projeto face às partidas em Graz ou na Reboleira ou se os sustos continuam a fazer parte do caminho.
Sacchismo. Na sequência das duas derrotas claras sofridas ontem pela Lazio e pelo Milan, na Liga dos Campeões, um golo marcado apenas e seis sofridos, Arrigo Sacchi não deixou sequer que o par de vitórias da véspera e a qualificação praticamente no bolso de Inter Milão e SSC Nápoles lhe adoçassem o paladar. “O futebol é um desporto ofensivo e coletivo, mas em Itália ainda o concebemos como um desporto defensivo e individual”, decretou nas páginas rosa da Gazzetta dello Sport de hoje o treinador que foi campeão da Europa no Milan graças a uma ideia, a “zona pressing”, que fazia do futebol um jogo eminentemente defensivo e coletivo. Um misto do que ele defende com o que ele renega, portanto? Não. O jogo está sempre em mutação e entendê-lo é muito mais do que jogar com as palavras. É interessante ver como os revolucionários permanentes, os que são tantas vezes acusados de “sobre-pensar” o jogo, como Guardiola, De Zerbi ou Luís Enrique, estão a voltar ao básico, à linha de quatro defesas que são mesmo defesas – às vezes Guardiola joga até com quatro defesas-centrais, coisa que Martínez chegou a fazer na Bélgica – e à linha de quatro atacantes que são mesmo atacantes. Não estamos a voltar 70 anos atrás no tempo, a reverter aquilo que a inteligência de Zagalo deu ao Brasil, quando inventou em campo o 4x3x3, porque hoje temos um entendimento mais avançado do jogo e do que cada elemento pode dar-lhe nas suas diferentes fases, mas há neste renascimento do 4x2x4 algo que ao mesmo tempo me intriga e me fascina. E que acaba por contrariar tanto as palavras como a prática de Sacchi. Porque, mesmo partindo de uma forma de ver o jogo que é coletiva, o que o 4x2x4 de Guardiola, De Zerbi ou Luis Enrique nos traz é a transformação do futebol num jogo ofensivo e individual, porque potencia sobretudo os duelos, o um-para-um. É uma tendência? Pode ser, se houver jogadores para isso, como é o caso no City ou no PSG. Ou se quisermos mexer no ninho das vespas, como tanto gosta de fazer De Zerbi.
Há um mês atrás foi o nariz de palhaço, agora o papagaio, está a ser simplesmente honesto, sincero, ou sarcástico? Ou ainda um imitador?