Esta Liga não admite falhas
A Liga portuguesa mudou na última década. Não só passou a celebrar campeões "perfeitos" como deixa uma equipa à beira da perfeição sem nada. E isso não é nada saudável, pois "criminaliza" a falha.
Os quatro primeiros venceram os seus jogos da 27ª jornada e chegaram à tão ansiada pausa para as seleções separados pelas mesmas distâncias pontuais, de maneira que continua a ser possível – ainda que altamente improvável – que venhamos a ter três equipas acima dos 80 pontos no final da Liga. Duas, contudo, é razoável que venhamos a ter, o que significa que a prova deixou de ser uma maratona para se transformar num sprint perfeito de 42 quilómetros e que o que disse Rúben Amorim após a vitória do Sporting em Guimarães é verdade: “é ver quem cai primeiro, a ver se isso mexe com o campeonato”. Além do jogo entre ambos, no Dragão, para a Taça de Portugal, entalado entre a 30ª e a 31ª jornadas, a partir daqui, os dois principais candidatos só terão mesmo de virar energias e a concentração para o campeonato, o que não deixa grande margem para dúvidas: provavelmente teremos em 2022 mais uma equipa a entrar para a galeria das que somaram pelo menos 80 pontos e mesmo assim não foram campeãs nacionais.
Desde que, em 2014, a Liga voltou às 34 jornadas, não houve um campeão com menos de 82 pontos – o que funciona contra o Benfica, que só ganhando todos os seus jogos, lá chega. Os campeões menos fortes deste período foram o Benfica de 2017 e o FC Porto de 2020, que se ficaram exatamente pelos 82 pontos. Mas vejamos a questão ao contrário – na eventualidade de vir a ganhar os sete jogos que lhe restam, o Sporting acabará com 88 pontos, mais três do que fez na época passada, a da interrupção do jejum, feita à conta de 85 pontos no final. Os leões têm, contudo, um enorme problema – além da necessidade de ganharem todos os seus jogos, como é evidente. É que se também vencer todas as suas partidas, o FC Porto chegará ao fim com uns avassaladores 94 pontos, mais seis do que o recorde da Liga de 34 jornadas, fixado nos 88 pontos pelo FC Porto de 2018 e pelo Benfica de 2016. E até mais três do que os que teriam sido feitos pela equipa comandada por Bobby Robson em 1994/95, caso a vitória nessa altura já valesse três pontos.
Estamos, portanto, na iminência de um ou dois feitos assinaláveis, caso FC Porto e Sporting sejam capazes de manter a passada. E isto é uma coisa nova, como que pós-moderna. Esta é a 24ª Liga com 18 participantes e 34 jornadas. Excluindo os casos de derivação jurídica, que foram as épocas de 1989/90 e 91/92, quando se andava dos 16 para os 20 clubes e se passava pelos 18, consoante as Assembleias Gerais da Federação decidiam alargar ou reduzir a prova para resolver berbicachos diversos, tivemos dois períodos de Liga com 18 clubes. O primeiro, de 1992/93 a 2005/06, deu 14 campeões, dos quais só cinco acabaram – ou acabariam, se lhes dessemos três pontos por vitória – acima dos 80 pontos. E foram sempre equipas do FC Porto: as de Bobby Robson em 1995 (91 pontos) e 1996 (84), a de António Oliveira em 1997 (85) e as de José Mourinho em 2003 (86) e 2004 (82). De resto, por essa altura, fazer 75/77 pontos era o suficiente para se ser campeão. E o Benfica de Giovanni Trapattoni, em 2005, conseguiu mesmo ganhar a Liga com 65 pontos – total que o FC Porto e o Sporting de hoje já ultrapassaram, a sete jogos do fim. É curioso que entre 2003 e 2005 Portugal tenha sempre tido uma equipa numa final europeia, duas vezes o FC Porto e uma o Sporting – mas a esse tema chego mais à frente.
No segundo período, de 2014 até agora, conforme já disse acima, não houve um campeão abaixo dos 80 pontos – na verdade não houve um campeão abaixo dos 82. E o que se verifica é que cinco dos sete segundos classificados superaram também a barreira dos 80 pontos, sem terem sido campeões. Aconteceu ao FC Porto de Julén Lopetegui em 2015 (82 pontos), ao Sporting de Jorge Jesus em 2016 (86), ao Benfica de Rui Vitória em 2018 (81) e aos dois FC Porto de Sérgio Conceição que não foram campeões, o de 2019 (85) e o de 2021 (80). O facto de Conceição se preparar para somar a quinta Liga consecutiva acima dos 80 pontos, ainda por cima sendo capaz de contrariar uma tendência de quebra que vinha desde o primeiro ano (passou de 88 para 85, para 82 e para 80 pontos), só tendo saído vencedor em duas das quatro primeiras, mostra que a Liga portuguesa não celebra um campeão: celebra uma super-equipa nas raias da perfeição e deixa geralmente outra a ver a banda passar. Como também disse Rúben Amorim no final do jogo de Guimarães, “no futebol português há três históricos, mas só um vai vencer”.
Perante esta questão, podemos escolher a forma de a encarar a realidade. Ou glorificamos a Liga pela capacidade que tem de produzir super-equipas ou arrancamos os cabelos à conta da incapacidade da generalidade dos participantes se oporem aos melhores. O FC Porto tem, neste momento, 90 por cento dos pontos possíveis, dos pontos que teria se tivesse ganho todos os seus jogos. O Manchester City, que lidera a Premier League inglesa, fez 80 por cento. O Bayern Munique conquistou 78 por cento na Bundesliga alemã. O Real Madrid soma 76 por cento na Liga espanhola. O Paris Saint-Germain ganhou 75 por cento na Ligue 1 francesa. E o Milan tem 73 por cento dos pontos na Serie A italiana. Até o Ajax, na Eredivisie dos Países Baixos, que tem uma realidade igualmente macrocéfala, como a nossa, mas já nos está a ultrapassar no ranking da UEFA, lidera com “apenas” 81 por cento dos pontos possíveis. As diferenças são avassaladoras e, como expliquei acima, relativamente recentes na realidade portuguesa.
A nossa Liga produz super-equipas, é verdade. E nem sequer alinho com os que alegam que depois essas super-equipas não são competitivas lá fora por falta de hábito competitivo nos jogos internos – Benfica, SC Braga estão a ser competitivos nas provas da UEFA, Sporting e FC Porto também o foram até ao momento em que tiveram um adversário inacessível (no caso dos leões) ou sucumbiram à pressão de não poder falhar internamente (os dragões). E é por isso que esta não é uma realidade saudável. Porque “criminaliza” em excesso a falha, fazendo-o a partir do momento em que é ela a “anormalidade”. Quando procuramos celebrar um campeão sem falhas, estamos a roubar-lhe o espaço de afirmação e, ao mesmo tempo, a dizer a outra equipa que vai acabar com um total quase perfeito – o Sporting tem 77 por cento dos pontos – que não vai ganhar. Esta, por enquanto, pode agarrar-se ao prémio de consolação que é o apuramento direto para a Liga dos Campeões. Mas atenção que nem isso é certo a partir de 2024. É por isso – e porque gerir é antecipar problemas em vez de se reagir a eles – que a Liga precisa de incrementar a competitividade, precisa de ter melhores equipas abaixo dos grandes, não só para pontuarem quando lhes toca jogar na Europa, como sobretudo para se acabar com esta realidade interna em que o mais ínfimo tropeção é a morte do artista. É que a pressão é incomensurável – e por algum lado tem de escapar.
Falta talvez criar um núcleo constante de equipas na classe média que sejam capazes de roubar pontos aos grandes como o foram na primeira década deste século as equipas da Madeira, o Boavista, sobretudo estes nesta altura, que até conseguiam apuramentos europeus com regularidade. Os outros, desde a segunda década, vão aparecendo mas ainda não se consolidaram. Não sei se essa falta de consolidação é boa ou má, porque pode ser apenas competitividade entre essas equipas ou incapacidade de se sustentar a bom nível por anos.
Os números não mentem, mas inclino-me para discordar do epíteto de super equipas, considerando antes que as restantes estão bem menos competitivas. Até porque nenhum dos plantéis que têm ganho campeonatos mais recentemente é de um poderio tal que justifique tanta diferença. Um ou dois benficas de jesus, o porto de vilas boas e (recuando no tempo) o Sporting de Carlos Queiroz, cujo talento merecia melhor treinador para ser campeão, isso sim, seriam equipas para terminar o campeonato sem derrotas e com quase o pleno de vitórias. Os plantéis mais recentes... De maneira nenhuma. Mas o fosso para as outras equipas agravou-se. E depois vemos na Europa que, tirando os suspeitos do costume, somos de uma pobreza franciscana. E até os suspeitos do costume não são raras as vezes que evidenciam a falta de intensidade que deriva do tal fosso que lhes permite jogar a 10 à hora na nossa liga e mesmo assim golear.