É o dinheiro a circular
As trocas de Marcos Cruz e Rodrigo Fernandes, por um total de 22 milhões de euros, são uma esperteza saloia destinada a provar a irracionalidade de um sistema que não serve para o futebol.
Por ter sido divulgada pela CMVM no mesmo dia em que o Observatório do Futebol coloca os três grandes de Portugal em excelentes posições num ranking que elaborou para definir os melhores clubes da Europa em termos de formação e desenvolvimento de talentos, a troca de Rodrigo Fernandes por Marco Cruz, um a sair da escola do Sporting para o FC Porto e o outro a fazer o caminho inverso, envolvendo um total de 22 milhões de euros, podia ser a prova de que os miúdos que saem daquelas academias são mesmo bons. Contudo, o dinheiro limitou-se a circular, a dar uma volta de 360 graus, acabando no exato local de onde tinha saído em primeiro lugar – se é que chegou a sair... –, pelo que a única coisa que esta operação veio demonstrar foi a relativa inutilidade dos procedimentos contabilísticos na avaliação da saúde financeira das grandes empresas. E é um grito no sentido da defesa da especificidade do futebol enquanto negócio que tem de ser alvo de procedimentos contabilísticos diferentes das outras áreas da alta finança.
Na verdade, com esta operação, ninguém está a roubar nada. Nada disto é ilegal. Limita-se a ser uma forma de contrariar uma forma de contabilização que faz pouco sentido no futebol. Se os clubes portugueses são essencialmente formadores – e são como vou mostrar mais à frente –, se criticamos operações onerosas que vão fazendo quando vão a mercados ainda mais periféricos do que o nosso e adquirem passes de jogadores inflacionados, não podemos depois aceitar que estejam permanentemente à beira da falência técnica por causa de uma falha no sistema. Ainda ontem, o Observatório do Futebol, braço do Centro Internacional dos Estudos do Desporto, publicou um ranking destinado a avaliar quais são os clubes mais bem sucedidos na formação e desenvolvimento de talentos na Europa, utilizando como critério o total de jogadores por eles criados a jogar atualmente nas 31 maiores Ligas. O Ajax lidera este ranking, sem surpresa, com 81 jogadores colocados, surgindo o Sporting em terceiro lugar, com 70. O Benfica é oitavo e o FC Porto 16º. O Observatório junta um segundo índice, este levando em conta o nível dos clubes onde os jogadores jogam atualmente, e nesta segunda tabela – igualmente liderada pelo Ajax – o Sporting é segundo, o Benfica quinto e o FC Porto 17º.
Daqui nasce a pergunta: como é possível que clubes tão bem sucedidos ao nível da formação de talentos estejam depois tão mal do ponto de vista financeiro, quase constantemente à beira da falência técnica? A questão, para quem está menos à vontade com estes termos, deve ser complementada com outra. O que é a falência técnica? Basicamente, uma empresa está em falência técnica quando tem capitais próprios negativos. É um índice contabilístico destinado a verificar se os ativos de uma empresa são ou não suficientes para cobrir a sua dívida total. Quando não são, diz-se que está em falência técnica – o que certamente terá uma série de inconvenientes em negociações com credores ou até com potenciais investidores, pouco confiantes em meterem dinheiro em empresas que estão tecnicamente falidas. Ora, em clubes cujos maiores ativos são frequentemente jogadores saídos das próprias academias, não é nada conveniente tê-los contabilizados a zero, que foi quanto as sociedades investiram nas suas compras. Esse é um defeito do sistema, que até à criação destas operações frequentemente prejudicava bastante os clubes de futebol, sobretudo os formadores.
As trocas de Marco Cruz e Rodrigo Fernandes, bem como as que o FC Porto tinha já divulgado anteriormente, feitas com o Vitória SC, também de jogadores da formação, têm duas consequências contabilísticas. A primeira é que, sem aumentar os gastos, aumentam os capitais próprios das duas empresas, que de repente passaram a ter, cada uma, um novo ativo, contabilizado em 11 milhões de euros. A segunda é que mascaram as contas do exercício em curso, que recebe no imediato uma receita extraordinária de 11 milhões de euros – correspondente à venda do jogador que saiu – e vai poder dispersar pelos anos de contrato do jogador que entrou os 11 milhões de euros nele gastos, originando um lucro imediato. Não são certamente operações ilegais, serão por certo imorais – ainda que não tenham sido as primeiras transações injetadas com esteroides inflacionários no mercado do futebol – mas são a resposta a um sistema que, no que respeita ao futebol, não é prático nem funciona.
Já tenho alguma dificuldade em entender as palavras de Miguel Braga, diretor de comunicação do Sporting, que veio dizer que graças a esta operação o clube pôde manter Palhinha, Matheus Nunes ou Pedro Gonçalves. Tanto quanto me apercebo, os clubes portugueses vendem jogadores por pressão da tesouraria – quando não têm liquidez – ou dos jogadores, que querem experimentar novas realidades e ganhar mais dinheiro. Não o terão feito nunca para mascarar os relatórios financeiros que apresentam a acionistas e auditores. O que esta “chico-espertice” vem mostrar é que, primeiro, o futebol é um nicho de inovação e improviso, capaz de desbravar caminhos ímpios que talvez nunca tenham sido vistos pelos gurus da alta finança. E, fundamentalmente, que o futebol enquanto indústria precisa de ser estudado e de ver defendida a sua especificidade até em temas aparentemente tão lineares como a contabilidade.