É hora de inversão de marcha
O incidente em torno da seleção da Nigéria na deslocação à Líbia pode ser chutado para canto, se continuarmos a fechar os olhos a tudo o que ameace a entrada de capital. Mas é altura de mudar.
O aperto sério passado pela seleção da Nigéria na deslocação à Líbia, onde devia jogar uma partida de qualificação para a fase final da Taça de África das Nações, veio chamar a atenção do Mundo para os perigos da inclusão. Leram bem: escrevi “perigos” e “inclusão” na mesma frase. A comunidade do futebol, que sempre se gabou de ser até mais inclusiva do que a própria ONU, tem essa possibilidade de unir os povos, mas têm-na deixado andar de mão dada com os riscos de permitir que os seus representantes fiquem à mercê de regimes párias, com os quais chega a deitar-se na cama desde que eles tenham dinheiro para investir. Este é um problema que tem de ser atacado. E só pode sê-lo com uma violenta inversão de marcha por parte da FIFA (e de todas as confederações nela filiadas) no que respeita a relacionamento com regimes totalitários e pouco respeitadores de coisas que o futebol devia defender, que são os direitos humanos. Isto é: desde que a FIFA faça o exato contrário daquilo que anda a fazer há mais de meio século – e em relação ao que se passou mais para trás nem me atrevo a tentar perceber.
O que se passou descreve-se em duas ou três frases. A Nigéria deveria jogar hoje (18h) em Trípoli com a Líbia uma partida de qualificação para a fase final da Taça de África das Nações. Como as viagens em África envolvem desde logo uma elevada componente de aventura (e acerca das diferentes condições de competição pelo mundo fora fiz há três anos esta reportagem, que podem ler para entender melhor o que digo), os nigerianos saíram de Lagos no domingo a seguir ao almoço. Quando iam aterrar em Benghazi foram informados de que afinal o avião não podia descer ali e reencaminhados para Al-Abraq, a 250 quilómetros. Era um inconveniente, mas tudo bem, pode acontecer. O que era mais difícil de explicar foi que no aeroporto onde finalmente desceram não houvesse quem lhes permitisse entrar no país. Nem água ou comida. A seleção da Nigéria passou nos bancos do aeroporto a noite de domingo para segunda-feira e só ao início da tarde de ontem lhe foi providenciado um autocarro para fazer a viagem até à capital, onde chegaria já à noite, a menos de 24 horas do jogo. Os dirigentes nigerianos recusaram e, no meio de outra aventura para conseguirem reabastecer o avião, mandaram a equipa voltar para trás. A saga foi sempre acompanhável pelas redes sociais dos jogadores, o que lhe retira um pouco o labéu de cativeiro. Os líbios garantem que não fizeram de propósito, muito menos por mal, mas sempre foram dizendo que no jogo da jornada anterior (1-0 para a Nigéria, em Uyo, na sexta-feira) também passaram por dificuldades que no entanto não propagandearam.
Se a questão foi um daqueles acasos por que todos nós já passamos ou uma vingança nascida da falta de respeito e do excesso de poder não escrutinado que é tão habitual em países de regimes políticos indefinidos, como é ainda a Líbia, 13 anos depois da destituição de Muammar Ghaddafi, caberá agora à Confederação Africana de Futebol, que é a organizadora da competição, decidir, após a realização de um inquérito que já foi anunciado. A questão é que, conclua o inquérito o que concluir, este nunca será um caso isolado. E é a este tipo de casos que se expõe o futebol quando sacrifica tantas vezes a decência ao poder de tiranos, seja porque eles têm dinheiro para investir e vêem no futebol uma forma de comprar a normalização ou porque os dirigentes do futebol mundial têm um desejo genuíno de unir o que a vida separou – e Joseph Blatter, por exemplo, chegou a achar que ia ganhar um Nobel da Paz à conta disso.
A FIFA tem agitado na sua agenda várias bandeiras importantes na modernidade, como a luta contra o racismo, a favor da inclusão ou da igualdade de género. Além disso, apregoa justamente a capacidade de sentar à mesma mesa gente que fora do futebol nem se olharia nos olhos. Quem não se lembra da equipa da Coreia unificada que esteve no Mundial de sub20, em 1991, em Portugal? Ou daquele Estados Unidos-Irão de 1998, em Lyon? Por alguma razão a FIFA tem 211 federações nacionais nela afiliadas e a ONU apenas 193 estados membros. Sim, é porque alguns desses membros da ONU se desdobram em várias federações de futebol (é o caso da Escócia, onde Portugal hoje joga, por exemplo), mas é também e acima de tudo porque há párias da humanidade que continuam a encontrar no futebol uma via para a sua própria normalização.
Este não é um problema que tenha nascido com Gianni Infantino, por mais que o atual presidente da FIFA ajude a lavar a face de Mohammad bin Salman, o príncipe herdeiro da Arábia Saudita. MBS é acusado pela Amnistia Internacional e pela Human Rights Watch de várias e continuadas violações de direitos humanos na “modernização” do regime que está a empreender, ao mesmo tempo que se constitui como o maior ideólogo da normalização internacional da imagem do país através da sua associação a eventos desportivos. Antes de Infantino, porém, já Blatter se colocara nas mãos de Vladimir Putin – sendo que foi no turno dele, ainda que ele no final tenha tentado saltar fora da carruagem em andamento, sem o conseguir, que se deu o escândalo da atribuição de um Mundial ao Qatar, com ajuda fortíssima de Nicolas Sarkozy e da realpolitik francesa em tempo de crise financeira internacional. Antes ainda, já o brasileiro João Havelange, eleito com o fortíssimo apoio da junta militar que em 1974 mandava no Brasil, inventara a governação num círculo vicioso criado em torno do dinheiro, fundado-a em dois pilares: dinheiro por votos e normalização por dinheiro. Como o segredo da recondução estava nos votos de federações pobres que por vezes nem uma linha telefónica possuíam, a FIFA apostou na universalização do futebol, garantindo apoios financeiros para a expansão do jogo nos quatro cantos do mundo. Era digno, claro. Depois, como era preciso garantir que esse dinheiro entrava para poder sair, associava-se a grandes marcas mas também a regimes ditatoriais, que no jogo encontravam a forma mais eficaz possível de sportswashing. E isso, na verdade, nem foi Havelange que inventou. Em 1966, a FIFA do britânico Stanley Rous já tinha feito linha e bingo, oferecendo o Mundial de 1978 à Argentina, que um mês antes tinha passado por um golpe militar, e o de 1982 à Espanha do Generalíssimo Francisco Franco. E antes ainda se ia jogar a edição de 1970 no paraíso da corrupção que era o México do PRI.
Podemos olhar para isto tudo e fazer duas perguntas. A primeira é: o que é que o incidente no Líbia-Nigéria tem a ver com isto? Tem tudo. Porque o que se passou neste Líbia-Nigéria pode sempre acontecer enquanto o futebol não fechar as portas a todos os estados que não respeitam os valores mais básicos da humanidade. A segunda é: mas o que pode Infantino fazer se a FIFA já anda perdida há mais de meio século? E a resposta é que pode, deve, fazer uma travagem a fundo seguida de inversão de marcha – por mais que seja acusado de uma visão excessivamente eurocêntrica e que lhe digam que aquilo que nos choca a nós, europeus, é visto como normal nesses locais. O futebol foi sempre um campeão da inclusão mas estes começam a ser tempos em que a exclusão lhe faz mais sentido.
Pior que isso é que FIFA e UEFA usam de dois pesos e duas medidas, como se vê do castigo a Rússia e antes à Jugoslávia, que não se viu contra EUA e Israel, por exemplo, além da atribuição da organização de competições e forma como se dá bem com regimes que se opõem a alguns princípios que ambos dizem defender. Isto enquanto cria iniciativas hipócritas e castiga os jogadores que nelas não querem participar.