Do racismo à intolerância
O racismo e a homofobia são flagelos sociais. Nos estádios, contudo, o mais grave ainda é a intolerância face ao diferente. É daí que nasce o ódio que nos faz recuar até insanos conflitos tribais.
Os insultos racistas a Vinicius Jr. em Valência têm-se espalhado como faúlhas em mato seco num dia quente de Verão espanhol. A coisa cresceu das cabeças de página que começou por ocupar nos jornais desportivos no dia seguinte aos incidentes para as manchetes preocupadas dos bons periódicos generalistas e já nos leva a questões ponderosas como se “a Espanha é racista” ou se “o futebol é racista”. Neste momento já conduz a Liga do inefável senhor Tebas a reclamar mais capacidade de ação e uma justiça sumária que não pode nunca ser a resposta às ações criminosas, por mais abjetas que elas sejam. Não conheço o suficiente de Espanha para alegar que a nação seja mais ou menos racista do que o são França ou Portugal, as suas vizinhas mais próximas, mas quanto ao futebol, mais que racista sei que ele é profundamente tribal, como se percebeu na reação imediata dos jornais de Valência (o SuperDeporte pôs o foco nas “provocações” de Vini Jr.) ou daqueles que não queriam que o Real Madrid saísse do caso com razões de queixa e cara de vítima e logo puseram a circular nas redes vídeos com insultos homofóbicos das bancadas do Santiago Bernabéu a Pep Guardiola, durante o recente desafio com o Manchester City, na Liga dos Campeões. “Ai Guardiola, ai Guardiola, que magro te vemos. Primeiro foram as drogas, agora é por Chueca [bairro gay-friendly madrileno] que te vemos”, cantavam os adeptos merengues. O racismo e a homofobia são flagelos sociais que urge atacar de forma célere e dura, mas será sempre um erro reduzir as suas dimensões ao que se passa no futebol. Primeiro, porque os seus tentáculos alcançam muito além dos relvados, e com consequências bem mais gravosas do que as que infelizmente também atingem a privilegiada classe dos futebolistas profissionais – e nisso, embora num mau dia para o recordar, tem razão Tebas quando diz que os próprios futebolistas negros terão uma responsabilidade social que não estão a desempenhar nesta luta, sobretudo por uma questão de comodismo. É mais fácil ver-lhes publicações em jatos privados do que em ações de sensibilização. E depois, sobretudo porque no futebol corremos o risco de ouvir os criminosos a adaptar a famosa frase desculpabilizadora do racista que até tinha amigos negros e a dizer algo como: “Racista, eu? Se até apoio os negros da minha equipa…” Em campo pelo Valência CF que ganhou ao Real Madrid no jogo que deu origem ao caso Vini Jr. havia cinco negros – Thierry Correia, Samuel Lino, Justin Kluivert, Dimitri Foulquier e Yunus Musah. Para os adeptos mais cegos, os negros do adversário são, como é evidente, “macacos” – e haverá sempre alguns cretinos que fazem questão de os recordar disso, seja de forma literal, seja com urros ou até mandando-lhes bananas para o campo –, mas os negros da equipa deles, em contrapartida, são exemplos de entrega, inteligência e virtude. Humanos, portanto. O racismo não deve ser normalizado nunca, porque é um crime abjeto. Mas, por mais impopular que isso seja neste momento, há que ter a noção de que, mais do que o racismo ou a homofobia, o problema maior do futebol é a intolerância, o ódio ao diferente.
Da Premier League ao dérbi. Em Inglaterra, no paraíso futebolístico que todos tentamos imitar que é a Premier League, o campeonato que o marketing global nos vende como sendo profissional por excelência, a Liga da qual os preços dos bilhetes e a ação das autoridades já expulsaram a maior parte dos atrasados mentais que só lá andavam para gerar problemas, o Manchester City quer agora afastar o líder do painel independente de arbitragem nomeado para julgar as acusações de 115 violações de regras de fair-play financeiro que sobre ele impendem, não porque o homem seja incompetente, mas porque é adepto do Arsenal. E fá-lo sabendo que o conselheiro real que paga a peso de ouro para ter à frente da sua defesa, David Pannick, é tão fervoroso fã dos “Gunners” como é Murray Rosen, o tal juiz do TAD que a Liga escolheu para liderar o processo. Mas, lá está: esse é “nosso”, é como o negro da nossa equipa. Nunca será “macaco”. A não ser, claro, que se mude para o outro lado. Em Portugal, tornou-se tão viral nos últimos dias um vídeo com o jornalista da SIC Rui Labaredas a dar uma lição de moral a um adepto do Sporting que entrava em Alvalade para o dérbi com o Benfica envergando um cachecol onde se viam dizeres ofensivos para o clube rival – e não chegam a ver-se quais, porque o homem, envergonhado, os escondeu de imediato... – como outro com um adepto do Benfica a tentar dar um pontapé no peito a um seguidor dos adversários que provavelmente procurava ocupar o seu lugar no meio da bancada que, face à maior afluência de benfiquistas, as forças de segurança entretanto tinham destinado aos visitantes. Na base dos incidentes está a mesma contradição que, há uns anos, num rasgo de inspiração, o humorista Jel denunciou na criação da figura do skinhead negro que, com o cão Salazar, nos divertia nas emissões do Vai Tudo Abaixo. A normalização do ódio ao diverso já se expandiu das bancadas de ultras até às tribunas dos juízes. E deixem-me dar-vos uma notícia: vai continuar a ganhar terreno, como já entenderam aqueles que conseguem palco à custa dele, do futebol à política.
A pressa e a perfeição. Os jornais começam a encher-se com notícias de mercado. E com os manifestos estratégicos que as “fontes bem colocadas” querem fazer passar para a opinião pública. Na semana que vem vou dedicar algumas emissões do Futebol de Verdade a uma antecipação do mercado dos nossos principais clubes, mas por enquanto limito-me a apontar a contradição entre o decidir depressa e o decidir bem, sobretudo num mercado periférico como é o nosso. Os presidentes podem fazer saber que querem definir tudo rapidamente, até antes da pré-época, mas depois deixam nos contratos dos jogadores cláusulas de rescisão que lhes tiram toda a margem de manobra. É a versão futebolística do “me engana que eu deixo”. Se quisessem verdadeiramente ficar invulnerabilizados a estas coisas, não fariam essas cláusulas ou limitá-las-iam a um determinado período: do fim do campeonato ao final de Junho, que é quando iniciam as pré-épocas, por exemplo. Porque a questão é que os nossos clubes perdem jogadores para outros que, sendo mais ricos, não têm tanta pressa – e, sobretudo, às vezes têm de esperar para conseguir o que querem antes de definirem a estratégia. O Tottenham, por exemplo, vai avançar hoje pela contratação de Arne Slot, o treinador campeão neerlandês pelo Feyenoord, que... não tem cláusula de rescisão. Em Roterdão, resiste-se à perda e o processo vai demorar. E só quando Slot chegar a Londres é que o clube começará a construir plantel – o que equivale a dizer que só nessa altura virá mexer com o nosso mercado. De que serve aos clubes meter as tais “fontes bem colocadas” a dizer que vão ter tudo definido rapidamente? De nada, como é evidente.
António, mais um texto assertivo e a tocar em pontos chave. Muito obrigado por este texto
O tribalismo justifica todo o tipo de acções precisamente porque uma vez na tribo não há consequências. A tribo serve como camuflagem para todo o tipo de ressentimento profundo e calcado que o ressentido pode pulverizar em quem é da outro tribo. Mais do que racismo, homofobia e qualquer ismo isso é um espelho da sociedade que ainda é paleolítica mas com uma agravante, com a ausência de consequências, tornou-se uma sociedade com vários adultos violentos infantis,