Desmontar o armário
A chegada de Gyökeres dá ao Sporting uma nova forma de jogar, mais direto para o ponta-de-lança de referência. Agora falta Amorim deitar fora o manual de instruções que vem em cada caixa do Ikea.
A ascendência húngara impede que Gyökeres tenha nome de armário do Ikea, mas a estreia do avançado sueco no ataque do Sporting, ontem, contra a Real Sociedad, mostra que ele não só tem caraterísticas capazes de mudar o jogo da equipa, como que Rúben Amorim precisa de pôr de parte o manual de instruções, daqueles bem esquematizados, que os fabricantes de mobiliário nórdico metem nas caixas para evitar que quem prefere montar as peças em casa acabe com uma escultura abstrata em vez do mono que era suposto ter. Embora ele tenha feito um golo na estreia, no primeiro remate que tentou, e a grande ânsia dos adeptos leoninos fosse por um ponta-de-lança finalizador, um nove clássico, a maior influência de Gyökeres no jogo da equipa não é essa. A grande diferença entre tê-lo e não o ter é que ele habilita os leões a um tipo de futebol que até aqui lhes estava vedado – um futebol mais largo, em direção a um ponta-de-lança de referência fisicamente imponente, resistente ao choque, capaz de receber de costas para a área e de ligar com a chegada dos médios e dos outros avançados. Isso, o sueco faz e faz bem. É potente, é rápido, é tecnicamente evoluído... Mas o Sporting, ontem, contra a Real Sociedad, parecia um miúdo encantado com um brinquedo novo, desprezando todos os que tantas horas boas lhe tinham já proporcionado. Sei que deve ser difícil de resistir à utilização obsessiva de uma nova arma, mas o que falta perceber é até que ponto a influência de Gyökeres não reverte as alterações potenciadas por Rúben Amorim na época passada, quando o treinador repetiu várias vezes que o Sporting estava a jogar mais como equipa grande do que, por exemplo, no ano do título. Vamos a ver: não há uma forma certa e uma maneira errada de jogar. O Sporting de atração e esticão, que pedia curto para depois jogar longo no espaço, não era na essência inferior nem superior ao Sporting que passou a usar mais as entrelinhas e o jogo interior, com as trocas posicionais do ataque móvel e a equipa mais curta e próxima. E nenhum dos dois será, em abstrato, inferior ou superior a um Sporting mais viciado no jogo para o ponta-de-lança de referência. Mas, possivelmente também porque a resistência física ainda não ajuda, porque ter Gyökeres e Paulinho não será a mesma coisa que ter Gyökeres e Trincão, por exemplo, ou porque faltam quilómetros ao meio-campo que Morita e Pedro Gonçalves podem formar, o Sporting de ontem pareceu forte mas demasiado previsível na forma de atacar. Este é o momento em que Amorim tem de olhar para o manual de instruções que vinha na caixa em que recebeu o sueco, abanar a cabeça, e perceber que há mais formas de montar a coisa. Quanto mais depressa o fizer, mais depressa os leões terão margem para progredir.
Os reforços do FC Porto. O Sporting ainda parece esperar por um médio e um ala direito, o Benfica até pode tentar Félix, mas nem leões nem águias parecem depender tanto dos reforços que poderão chegar para definir o futebol da equipa como o FC Porto. Aquilo que os dragões mostraram ontem, contra o Wolverhampton WFC, foi o futebol de 2022/23, mas sem a qualidade de Uribe. Namaso parece crescer como se esperava, já se percebe que ali há jogador a germinar, mas vem para a única posição onde a concorrência já era grande – Taremi, Toni Martínez, Evanilson... – e para onde ainda por cima chegou o único reforço já confirmado, que é Fran Navarro. A confirmarem-se as suas contratações, Alan Varela e, sobretudo, Nico González podem dar ao jogo do FC Porto o upgrade de que Sérgio Conceição tanto necessita. E se de caminho acharem mais concorrência para as laterais, excelente.
Mbappé e a Arábia. A julgar pela maioria dos comentários que fui lendo, ontem, no Facebook, acerca do texto que escrevi sobre a proposta saudita por Mbappé, admito que não me tenha explicado bem. Ou isso ou muitos dos que comentaram o fizeram sem ler, julgando saber o que lá estava – o que também é um clássico. Mas explico-me melhor. Desde que paguem impostos, não tenho nada contra os salários milionários pagos aos jogadores de futebol, como não tenho nada contra os milhões movimentados em qualquer outra indústria. O racional do negócio é próprio de qualquer atividade e é esse racional que está posto em causa neste processo. Porque pagar àquele nível para se tentar ganhar uma Liga dos Campeões é uma coisa, pagar àquele nível para ganhar o campeonato saudita a mim já me parece outra, completamente diferente. Será igualmente legal e legítimo, mas é uma forma de ostentação de que não gosto – daí a comparação do PIF com o pai que paga à Scarlett Johansson para ir ao baile de finalistas com o filho que ainda não tinha par. Dito isto, porque depois a conversa descamba logo para os doentes do Ronaldo contra os doentes do João Félix, não escrevi que Mbappé era o primeiro, o único ou que será sequer o último craque de dimensão mundial que os sauditas – legitimamente – tentam atrair com salários injustificáveis para a realidade da sua Liga. Mas há uma diferença entre o Mbappé de hoje e o Ronaldo de Novembro – é que o francês, neste momento, joga onde quiser, e o português, há oito meses, viu-se sem saídas de topo para o psicodrama em que estava metido em Manchester. Quando digo que Mbappé deve recusar a proposta – e é só a minha opinião – não estou a dizer que você, caro leitor, não deveria aceitar uma proposta da Arábia Saudita, caso ela lhe surgisse. Estou a dizer que estes valores de que se fala farão menos diferença na vida de Mbappé do que mil euros na sua ou na minha. E, sublinho, sem fazer juízos morais, porque ainda há dias, a propósito da recusa de Marco Silva, escrevi que cada um sabe de si, o que eu acho é que Mbappé poderá definir as razões pelas quais vai ser recordado – além de um enorme jogador de futebol. O que ele pode escolher é o legado que deixa. O que ele tem pela frente é um encontro com a história – não é uma reunião com o gestor de conta.