Cristiano e o Pombo
O golo de Cristiano Ronaldo, o primeiro jogador da história a marcar em cinco Mundiais, teve o destaque dividido com a proeza de Richarlison, o Pombo, que deu a vitória a um bom Brasil.
O dia podia ser de Cristiano Ronaldo, que além de ter marcado num quinto Mundial seguido, algo que nunca ninguém tinha feito na história da prova, ainda teve a fortuna de beneficiar da boa escolha de ângulos da realização televisiva, que adivinhou onde ele iria festejar e pôs lá uma câmara pronta para lhe captar o festejo bem à frente de uma tarja gigante com a face de Messi a sorrir. Mas a seguir veio o Brasil. E o Brasil não só jogou bem como reduziu a pó uma Sérvia que merece muito respeito. E teve em Richarlison o herói, com um bis que, somado às preocupações sociais que o atacante costuma ter, fizeram dele a figura de um dia em que Carlos Queiroz, o selecionador do Irão, também achou espaço nos títulos dos jornais, por ter sugerido à jornalista da BBC que em vez de andar a perguntar-lhe acerca da situação no Irão devia era ir falar a Southgate acerca do Afeganistão.
Mas vamos ao futebol, a começar por Portugal. A impressão generalizada é a de que a equipa nacional pode render muito mais e que até o próprio Ronaldo terá ficado aquém do que já se lhe viu. “No auge, ele teria arrumado o Gana com um hat-trick, mas em vez disso passou os últimos minutos a observar aterrorizado, do banco, a forma como, tendo aparecido por trás do entorpecido Diogo Costa, Iñaki Williams tropeçou quando já se avistava um sensacional golo do empate”, escreve Nick Ames no The Guardian. Na Gazzetta dello Sport, Fabio Licari fala de um jogo ganho no banco, quando Fernando Santos corrigiu a equipa, depois de “um primeiro tempo ao ritmo do fado”, fazendo entrar William e Leão, enquanto que Otto Addo, o selecionador ganês, tirou de campo Kudus e Andre Ayew. “Loucura”, escreve o jornalista italiano, que considera William, Leão e Bruno Fernandes os três melhores portugueses, com nota sete, colocando no polo oposto Cancelo e Diogo Costa, ambos com cinco. No L´Équipe, que só dá notas aos titulares, Règis Dupont destaca a ação de Bruno Fernandes e Bernardo Silva, ambos com sete, e é particularmente duro com Cancelo (que leva um três em dez) e Diogo Costa (quatro), o primeiro por ter sido “muito negligente” no lance do segundo golo ganês e o segundo por quase se ter deixado surpreender por Iñaki Williams no lance que só não deu empate porque o hispano-ganês se espalhou ao comprido no relvado. “Se não fosse essa queda providencial, seria a languidez do domínio português na primeira parte a estar no centro do debate”, escreve Dupont.
Em Espanha, no El Pais, Diego Torres destacou também a “melancolia de Portugal”, anotando que “os engenhosos interiores portugueses não conseguiam dar velocidade à circulação de uma forma sustentada”. Foi esse também o ponto que preferi destacar na análise ao jogo de Portugal, que fiz nas Conversas de Bancada de ontem. Era, contudo, muito difícil escapar ao engodo de Ronaldo, nomeado MVP num dia em que superou Pelé e Messi. Foi esse o caminho escolhido por Luciano Trindade, na Folha de São Paulo, que não se alonga em análises ao jogo, limitando-se a destacar o feito do CR7 e a descrever factualmente o que sucedeu no relvado. No The New York Times, John Branch descreve como foi Ronaldo quem “tirou a rolha ao jogo a meio da segunda parte”, encaminhando a partida para um “drama no final”. E Michael Cox, no The Athletic, fala também num jogo “com duas partes distintas”, ainda que considere que “Portugal foi melhor antes de se colocar em vantagem”. Cox gostou até do ritmo português na primeira parte: “Portugal, que passou os últimos 18 meses desligado no ataque, começou o jogo com brilhantismo. O ritmo dos passes era bom. À vez, os médios ora entravam na defesa a cinco do Gana, ora baixavam para ajudar a tornear os dois atacantes adversários. (...) Guerreiro e Cancelo empurravam a equipa para o ataque, o meio-campo levava a bola para posições exteriores, onde havia trocas posicionais. E, talvez mais surpreendentemente, houve pressão, algo que parecia impossível a uma equipa que tenha Cristiano Ronaldo na frente”, escreve Cox. Acreditem em mim: se o que querem nesta manhã é incrementar o otimismo, vão lá e leiam, porque não encontram na imprensa internacional uma análise mais simpática para o que fez a equipa de Portugal.
As coisas encaminhar-se-iam para que Ronaldo pudesse roubar as imagens de primeira página um pouco por todo o Mundo, se não aparecesse o Brasil. E se Richarlison não tivesse marcado aquele golaço com que selou os 2-0 à Sérvia. “Faz no treino, faz no jogo”, destaca Alex Sabino na Folha de São Paulo, optando por pontuar a análise ao desafio com a frase dita pelo Pombo no final. “Quando a bola subiu ao ar aos 28 minutos do segundo tempo, Richarlison já sabia o que fazer e começou a ajeitar o corpo. Décimos de segundo mais tarde, ele protagonizaria o mais belo gol já marcado pela seleção brasileira em uma estreia de Copa do Mundo”, anota o jornalista. Richarlison já tinha feito o primeiro golo, o que levou Marcelo Damato, na mesma edição do jornal paulista, a atribuir-lhe a responsabilidade maior pela tão falada “redenção da camisa”. Partindo da “derrota eleitoral (...) do líder máximo da instrumentalização política do verde-amarelismo”, Damato regozija-se com o “longo caminho de volta de uma peça de vestuário à sua função puramente esportiva”, considerando a camisola “um símbolo de união nacional”.
A imprensa internacional, contudo, centra-se muito mais na prestação desportiva do Brasil. No L’Équipe, Damien Degorre dá nota oito a Richarlison e diz que o jogador “está pronto a assumir o estatuto” do número nove da seleção. Na página anterior, Hugo Guillemet traz-nos as notas da zona mista e da conferência de imprensa posterior ao jogo e tempera um pouco o entusiasmo acerca da boa estreia do Brasil por causa da lesão de Neymar, que deixou em dúvida o camisa 10 para o resto da competição. “Temos confiança. Ele vai continuar na Copa. Repito: ele vai continuar na Copa”, disse o selecionador, Tite. O sentimento generalizado, no entanto, é de otimismo – e basta ouvirem os podcasts brasileiros que destaco mais abaixo para o sentirem. No The Guardian, Barney Ronay fala do segundo golo de Richarlison como o “momento champagne” deste Mundial. Na Gazzetta dello Sport, em artigo não disponível na edição on-line, Davide Stopini conta a história do jogador, que veio da favela à seleção mas não esqueceu nunca as origens. E no El Pais José Samano afirma que Richarlison espevitou o Brasil, que apareceu no Qatar com duas caras: “um Brasil tonto e partido ao meio deu a vez a um Brasil mais nuclear e corporartivo”.
Ora, com tanta coisa à volta do Brasil, é normal que pouca gente se tenha apercebido do que passou Carlos Queiroz na véspera do jogo do Irão contra Gales, que já começou quando vos termino estas linhas. O treinador português fartou-se de responder a perguntas acerca da situação no Irão e contra-atacou. Ben Fisher conta a história no The Guardian, explicando que Queiroz “reiterou a importância da liberdade de imprensa, mas deixou claro que sentia que já era hora de perguntarem a outros treinadores acerca de temas mais vastos, considerando ‘estranho’ que os rivais evitassem as questões”. Antes de ser levado da sala, Queiroz deixou uma pergunta à jornalista da BBC: “Porque é que não pergunta a Southgate o que pensa do facto de Inglaterra e os EUA terem deixado o Afeganistão e as mulheres abandonadas [à sua sorte]?”. Podia vir agora aqui dizer-vos que isto é só Queiroz a ser Queiroz, que Queiroz não é Queiroz sem uma pequena guerra – elas parecem persegui-lo como, no dizer do próprio, os recordes perseguem Ronaldo. A questão é que o homem tem a sua razão.
Conversas de Bancada
A Ler:
Vida da seleção brasileira vai além de Neymar, por Paulo Vinicius Coelho, na Folha de São Paulo, onde se descreve todo o arsenal de craques que Tite tem à disposição para o ataque do escrete.
“The game’s most reliable leading man steals spotlight once again”, por Sid Lowe, no The Guardian, acerca daquele a quem chama “Five-star Cristiano”, o primeiro jogador a marcar em cinco Mundiais.
Pedri, Gavi and a very Spannish obsession with space, por John Muller, no The Athletic, explica com recurso a imagens o jogo da seleção espanhola e o que o faz tão diferente de todas as outras equipas.
American dreams, honed in Leeds, por Rory Smith, no The New York Times, conta a história de Brenden Aaronson, médio da seleção norte-americana, a partir de um episódio solidário com Jesse Marsch.
USA vs England and the path towards respect and rivalry, por Oliver Kay, no The Athletic, é uma viagem à história dos confrontos entre Inglaterra e os Estados Unidos, desde a zebra do Mundial de 1950.
Équateur, les pieds dans le berceau, por Bernard Lions, no L’Équipe, ajuda a descobrir o papel desempenhado pelo setor de formação do Independiente del Valle no renascimento da seleção equatoriana.
Argentina busca quien la cosa, por Lorenzo Calonge, no El Pais, descreve a demanda de Lionel Scaloni por quem seja capaz de unir a equipa argentina a Messi face à ausência de Giovani Lo Celso.
“Argentina, Diego è qui e ti darà uma mano”, por Fabio Bianchi e Luigi Garlando, na Gazzetta dello Sport, é uma entrevista ao ex-campeão mundial Jorge Burruchaga acerca daquilo que tem visto neste Mundial.
La horrible vejez de Cristiano Ronaldo, por Iñako Díaz Guerra, no El Mundo, é uma crónica mais impressionista acerca do momento vivido por Cristiano Ronaldo, quando ele marca pelo quinto Mundial consecutivo.
“My parents risked their lives to provide for me and Nico – World Cup is for them”, por Dermot Corrigan, no The Athletic, é uma entrevista com Iñaki Williams, na qual o atacante do Gana conta a história da sua vida.
France fire but Argentina freeze, por Thom Gibbs, no Daily Telegraph, faz o ranking das 32 equipas de acordo com o que mostraram nesta primeira jornada, colocando a França no topo, a Espanha em segundo e Portugal em quinto lugar.
A Ouvir
Em dia de jogo do Brasil, vale a pena percorrer os podcasts que chegam do lado de lá do Atlântico acerca da Copa. Hoje deixo aqui duas sugestões. O mais institucional Posse de Bola, do UOL, fez um episódio especial, apresentado por Eduardo Tironi, José Trajano e Arnaldo Ribeiro e com as entradas desde o Qatar de Walter Casagrande, Juca Kfouri e Mauro Cezar Pereira. E para quem gosta de abordagens mais alternativas, há o Futebol no Mundo, da ESPN Brasil, onde Alex Tseng recebeu no show de hoje a companhia de Paulo Calçade e Mário Marra e teve ainda o contributo de Gustavo Hofman, que está no Qatar. Toda a gente gostou muito da estreia brasileira, especialmente da segunda parte, com destaque natural para os dois golos de Richarlison e para a desilusão que foi o “menino Ney”, sempre muito “fominha”, isto é, muito agarrado à bola. Vale a pena ouvir os dois, até porque ambos se alongam depois pelo futuro do Brasil na Copa, dando como seguro o primeiro lugar de Portugal no seu grupo e afirmando que mais vale fugir dos portugueses. Entre críticas a Fernando Santos, há por ali muito respeito pela seleção lusa: “Tem grandes jogadores. O treinador escala mal, mas vai que nesse dia ele escala bem...”
A ver
Gales-Irão, 10h, Sport TV1
Qatar-Senegal, Sport TV1
Holanda-Equador, RTP1 e Sport TV1
Inglaterra-EUA, RTP1 e Sport TV1