Como Motta mudou a senhora
Ainda é cedo para veredictos seguros, mas a Juventus de Thiago Motta tem sido a sensação do início de época nas Big Five. Há razões para otimismo, até porque muitos dos craques ainda nem calçaram.
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As três vitórias do FC Barcelona de Hansi Flick no arranque da Liga espanhola, todas obtidas nas segundas partes – e duas no último quarto-de-hora – têm chamado a atenção para a equipa catalã, dividindo o protagonismo com as aventuras de que têm sido rodeadas todas as inscrições de novos jogadores, mas a realidade mais excitante e surpreendente do futebol europeu neste início de época vem de Turim, onde Thiago Motta está a dar a melhor sequência possível ao belíssimo trabalho que já tinha feito em Bolonha. A Juventus ainda não tem a jogar uma boa parte dos reforços sonantes que o diretor desportivo Cristiano Giuntoli garantiu esta época – um lote no qual está incluído Francisco Conceição –, mas mesmo assim partiu na Serie A com duas vitórias claras, por 3-0, permitindo apenas um remate enquadrado aos adversários em 180 minutos – fê-lo Tengstedt – e vendo Vlahovic acertar duas vezes nos ferros. O circo que rodeia a Liga italiana já saliva com a perspetiva de regresso da Velha Senhora e a possibilidade, bem real, de a ver discutir com o Inter um scudetto que os nerazzurri ganharam a passear em Maio, com 19 pontos de avanço do segundo.
O futebol de Motta é, como ele, uma miscelânea de caraterísticas bem diferenciadas. Nascido em São Bernardo, no Brasil, numa família de raiz italiana, formou-se futebolisticamente em La Masía, com o DNA do FC Barcelona, onde recebeu a escola neerlandesa, ministrada nos seniores por Louis Van Gaal e, depois, Frank Rijkaard. Foi com este que ganhou a primeira Liga dos Campeões. A segunda conquistou-a no Inter Milão, comandado por José Mourinho – e a experiência vivida ali tê-lo-á marcado tanto que, liderava ele os sub19 do Paris Saint Germain, na primeira entrevista a sério que deu como treinador, aquela que anos depois ainda era gozada por ele ter dito que via a sua equipa a jogar em 2x7x2, ainda se referiu ao papel de Samuel Eto’o, um avançado credenciado, a ajudar a defender um dos corredores laterais na eliminação do Barça, naquela aula tática após a qual Mourinho chegou a dizer que não usou o “autocarro mas sim o Airbus”, porque fechou com as asas. Ora não é fácil encontrar uma escola na qual encaixar Motta, porque ele usa a construção baixa e gosta da progressão através da formação de triângulos que está na base do futebol do Barça, mete lá o guarda-redes, e depois recorre a uma pressão subida que, não sendo incompatível com esse jogo “à catalã” e sendo mesmo a fundação do futebol “à holandesa”, ele a usa como ponto de partida de rápidas contra-transições muito mais próprias do jogo da escola alemã. E faz tudo isso com base num 4x2x3x1 que, não sendo absolutamente clássico, porque muitas vezes avança os centrais em posse e baixa os laterais para construir, é muito menos surpreendente do que acharão aqueles que levarem na perspetiva ortodoxa a tal referência ao 2x7x2 em que o guarda-redes acaba por “ser o primeiro médio”.
A diferença entre essa forma de ver as coisas e a que Motta usava era muito simples. Mandam os cânones que se olhe para os sistemas na vertical, mas Motta catalogava a sua equipa mais na horizontal, da direita para a esquerda: dois homens no corredor direito, sete no corredor central, dos quais, sim, o guarda-redes era o primeiro, porque lhe exige que seja capaz de dar soluções em posse, e outros dois no corredor esquerdo. Como vivemos a era das perceções e da democratização da difusão de opiniões muitas vezes irresponsáveis – mas quanto menos responsáveis e mais mediáticas, mais virais... –, essa frase voltou para o assombrar quando, em Dezembro de 2019, foi despedido pelo Génova CFC, apenas um par de meses depois de lá ter substituído Aurelio Andreazzoli. Mas Motta não deixou de acreditar na sua fórmula, foi com ela que salvou o Spezia da despromoção, em 2022, e que conduziu o Bolonha FC a um nono e a um quinto lugar em 2023 e 2024. Na época passada, os “rossoblu” jogavam um futebol de compêndio, apontado pela generalidade dos analistas a par do que ia sendo posto em prática pelo Brighton de Roberto de Zerbi como um dos mais progressistas da Europa, porque tinha variabilidade de construção, posses prolongadas, ao mesmo tempo que se destacava pela dificuldade que impunha à criação de ocasiões pelos adversários. E foi esse o futebol que a Juventus procurou quando resolveu aproveitar o fim do contrato de Motta para lhe dar a vaga que libertara deixando sair Massimiliano Allegri após o terceiro lugar da última época.
Não há mais nenhuma equipa nos principais campeonatos da Europa a ter concedido apenas um remate enquadrado nas primeiras duas jornadas de Liga. Na Juventus, não se mantinha um zero nas redes nessas primeiras duas jornadas desde 2014 e não se chegava a este ponto com o máximo de pontos (seis) desde 2019. É certo que os adversários, o recém-promovido Como 1907 e o Hellas Verona, não são equipas de topo, mas não só não perderam o outro jogo que fizeram como é preciso ter em conta que a própria Juventus está ainda muito longe da máxima força que lhe permite um plantel avaliado pelo Transfermarkt em 581 milhões de euros – face aos 504 milhões da época passada. Mesmo tendo em conta que diminuirá com a iminente perda de Federico Chiesa, este valor ainda crescerá para perto dos 600 milhões com a inclusão de Teun Koopmeiners. E se o holandês em trânsito da Atalanta ainda nem chegou, os extremos Nico González e Francisco Conceição também não se estrearam, pois só durante esta semana se fecharam os negócios dos empréstimos por parte da Fiorentina e do FC Porto. Mesmo entre os que já lá estão, os médios Douglas Luiz (ex-Aston Villa) e Kephren Thuram (ex-OGC Nice), 72 milhões de investimento conjunto, ainda não estiveram juntos em campo, abrindo o palco à confirmação de jovens valores como o atacante Mbangula e o lateral Savona, ambos formados em casa, tal como o turco Yildiz, já nas bocas de todo o Mundo desde a época passada e presença impactante no último Europeu.
“Quanto te apercebes de que o ambiente é mau, que está saturado, é preciso dar uma guinada no rumo. Foi o que fizeram Cristiano Guintoli e Thiago Motta. Reacenderam a chama a esta equipa”, comentou na Gazzetta dello Sport Massimo Mauro, que foi campeão italiano na Juventus na década de 80 e respondeu de forma interessante quando lhe perguntaram qual tinha sido o golpe de mercado favorito. “Foi o futebol de Thiago. Tornar-se-á um valor acrescentado e transformará um bom grupo numa equipa verdadeira”, disse o médio que depois também conheceu a glória de um scudetto ao lado de Maradona no SSC Nápoles. “Sem desmerecer no que fizemos na época passada, a Juventus tem agora um jogo diferente”, reconheceu Vlahovic após o bis ao Hellas Verona, surgido na sequência do jogo em branco – ainda que com as tais duas bolas nos postes – na primeira jornada, contra o Como 1907. Será este futebol suficiente para superar um Inter já tranquilamente instalado no topo da hierarquia do futebol italiano ou até um SSC Nápoles em crescimento com a provável reunião de Lukaku eAntónio Conte, nomes incontornáveis do scudetto do Inter em 2021? É o que nos dirá a temporada, a começar já com o clássico contra a AS Roma, no domingo. Sendo que nunca Motta tinha vivido um início tão esclarecedor das capacidades de uma equipa. Como se viu em Bolonha, onde os adeptos chegaram a pedir a sua demissão ao presidente após cinco rondas iniciais sem vitórias, o forte dele costumam ser os finais.