Melancolia? Ainda é esperança
Os outros, ali, somos nós. Reflexões sobre melancolia, esperança, torneios memoráveis e o jogo de abertura que hoje oporá a anfitriã Alemanha e uma Escócia da qual ninguém espera grande coisa.
Estava a ler um texto de Fernando Aramburu, no El Pais de hoje, acerca da melancolia que ele diz ter substituído a ilusão como mote alemão para o Europeu, e veio-me à memória uma imagem da reportagem que a RTP fez ontem, a propósito da chegada da seleção nacional a Marienfeld. Nela, aparecia uma senhora de meia-idade, vestida com o verde e o vermelho das cores nacionais, as tais cores que, adaptadas à realidade alemã, o basco Aramburu diz que deixou de ver nas ruas como se via em 2006, quando ali se jogou o Mundial. É importante que se explique que Aramburu, autor do notável “Patria” – romance que foi adaptado a série pela HBO e vale muito a pena – vive na Alemanha desde 1985. Mas não nos desviemos da imagem. A senhora, evidentemente portuguesa, pelas cores do vestuário, foi apanhada com um olhar sério, emocionado, eventualmente até melancólico, enquanto estava no meio da multidão e agitava uma bandeira, uma das tais bandeiras que Aramburu diz que já não vê, a acolher os 26 jogadores que Roberto Martínez levou para Marienfeld. Ao lado dela estava uma mulher mais jovem, de negro, cabelo coberto, traje muçulmano, o que diminui as probabilidades de ser portuguesa, a ostentar um sorriso cheio de esperança, de admiração face ao que estava a ver. Imagino que possa ser nora da primeira senhora, a da bandeira, mas também pode não o ser, porque nestas coisas das chegadas dos craques de futebol a malta acomoda-se como pode. O que poderão as duas ter em comum, a senhora do olhar melancólico e a jovem do sorriso esperançoso? A resposta deu-a um português que falou nessa mesma reportagem, envergando a novíssima e bonita camisola alternativa da equipa nacional, ladeado por um jovem vestido de igual, talvez o filho, e por outro com uma camisola do Real Madrid, imagino que amigo do filho: “É uma alegria enorme estarmos aqui e vir a seleção ao país onde nós estamos a viver, a trabalhar. E ganhar contra eles. Porque se eles calham de ganhar é um dia de ‘atormento’ para nós”, disse, ante as gargalhadas às vezes até um pouco alarves do jovem trajado à Real Madrid. Completa-se aqui a quadratura do círculo a que alude Aramburu quando menciona a falta de entusiasmo dos alemães perante o Europeu ou que levou o leste do país, se calhar mais afetado pela crise, porque estava no lado errado do muro quando ele caiu – e sobretudo quando foi construído – a votar de uma forma tão massiva na extrema-direita ultra-nacionalista nas últimas eleições europeias. É que nós, ali, somos os outros, os que estão contra eles, que os nossos não querem que ganhem. O português da camisola alternativa, o espanhol vestido à Real Madrid, a jovem muçulmana, talvez turca, e até a portuguesa da bandeira e do olhar melancólico não se incomodarão muito se a vitória final sorrir às seleções dos outros parceiros nesta espécie de coligação, só se sentirão atormentados se no final se cumprir o aforismo de Lineker e ganhar a Alemanha. O sentimento que os marca não é a melancolia. É a esperança, não só na equipa que os vai representar – ou nas equipas, que afinal de contas são todas menos a Alemanha... – mas sim num futuro melhor. Podem achar bem ou achar mal, que ninguém vos leva presos, mas lembrem-se disso, do orgulho que sentem por termos tanto apoio português em todo o lado, da próxima vez que vierem queixar-se do estado em que está o Mundo. É que, ali, os estranhos somos nós. E nem somos os culpados da melancolia alemã, da “incerteza convertida em medo e irritação” de que fala Aramburu, nem queremos que nos tirem o sonho. Quanto mais não seja de levantar a taça no dia 14 de Julho.
Os torneios da nossa vida. A Alemanha é um belo sítio para se fazerem Mundiais ou Europeus. E digo isto mesmo tendo sido o Euro’88, na RFA, o último antes da minha estreia na prova, que acompanhei perla primeira vez ‘in-loco’ pelo Expresso, na Suécia, em 1992, ou tendo sido o Mundial’2006, já na Alemanha unificada, o único a que não fui nos últimos 30 anos, porque andava numa deriva pela imprensa generalista, antes de começar a comentar os desafios da seleção nacional na RTP. Mas mais até do que o penalti de Panenka, em 1976, no Marakana de Belgrado, que se converteu no momento mais mitificado da história da competição, o meu clip fundador de um Europeu foi o vólei de Van Basten a encobrir Dassaev antes de entrar no poste mais distante, em Munique, na final de 1988. E o Mundial da minha vida é o de 1974 – tinha só quatro anos, mas vi-o todo, recentemente, durante a pandemia, e mantenho que foi a última vez que uma competição destas nos trouxe tanta inovação, porque depois disso já toda a gente sabia o que toda a gente fazia e ia fazer. Apesar da vitória de uma Itália negativa e da cabeçada de Zidane em Matterazzi, a ensombrar a final, o ano de 2006 trouxe-nos, ainda assim, um belo Mundial. Nele apareceu a que podia ter sido a melhor seleção portuguesa de sempre, porque ainda tinha Figo na plenitude e já tinha Ronaldo além daquela experiência de acne juvenil que surgiu em 2004. Essa equipa, igualmente marcada pelas vitórias do FC Porto na Taça UEFA de 2003 e na Liga dos Campeões de 2004 e pelas cada vez maiores hipóteses de exportação de talentos que essas vitórias desencadearam, a permitir aos nossos melhores o crescimento consolidado que antes não lhes era possível – ainda que de caminho sacrificando muitos outros, incapazes de aguentar o embate – não foi além das meias-finais. Em 2024 se verá se Ronaldo consegue mostrar-se ainda na plenitude e somar ao talento bem adulto de Bruno Fernandes e Bernardo Silva para que, no regresso à Alemanha, esta equipa destrone a de 2006, não em termos de títulos – que a de 2016 até já os ganhou – mas na galeria das que mais jogavam entre todas as equipas nacionais.
Uma abertura de sentido único. Hoje (20h, RTP1, e lá estarei para os comentários em direto) começa o Europeu, com um Alemanha-Escócia que se antevê muito de sentido único. Ouvi no podcast da BBC sobre futebol escocês (episódio aqui) uma expectativa que não creio venha a confirmar-se, de que a Escócia terá apenas 20 por cento da bola, mas números entre os 35 e os 40 por cento não estarão fora das expectativas gerais para uma partida em que se adivinha uma Alemanha a querer impor os seus talentos criativos, Musiala e Wirtz à frente de todos, debaixo da batuta de Kroos, e uma Escócia a tentar saídas rápidas para o contra-ataque, com a exploração do desdobramento Tierney-Robertson à esquerda. Não creio que os desafios à seleção da casa cheguem verdadeiramente numa primeira fase em que não se adivinha quem lhe possa expor a falta de qualidade atrás. Nesta fase, aliás, Nagelsmann talvez nem precisasse de Andrich a meio-campo e pudesse baixar Gündogan para encarar os adversários com Sané ao lado de Musiala e Wirtz e atrás de Havertz. Mas muito se iludirão os alemães se, voltando a Aramburu, saírem da primeira fase menos melancólicos e mais esperançosos. Porque isto só vai aquecer daqui a quinze dias.
Entrelinhas
This Germany team has to turn the nation from doubters into believers, artigo de Jonathan Liew, no The Guardian.
Germany are no longer the ‘tournament team’ and fans fear the worst, artigo de Sam Dean, no The Telegraph.
Austin MacPhee lifts lid on specialist Scotland Euro 2024 role, artigo de Alan Pattullo, sobre o treinador de bolas paradas da Escócia, no The Scotsman.
La plus pacifique des armées, reportagem de Pierre-Étienne Minonzio com o Tartan Army, grupo de adeptos escoceses, complementada com uma entrevista a Rod Stewart, no L’Équipe.
Adolf Hitler, Jesse Owens and Berlin’s Olympiastadion: the complicated history of Euro2024 final venue, artigo de Adam Crafton sobre o Estádio Olímpico de Berlim, no The Athletic.
Germania pericolosa, Portogallo sorpresa, ma io credo in Spalletti, antevisão de Arrigo Sacchi, na Gazzetta dello Sport.
Ivan Rakitic: “Modric? Cómo alguien tan pequeñito puede ser tan grande?”, entrevista de Juan I. Irigoyen ao médio croata, no El País.