Assobiar a golear
Com 4-0 e um penalti a favor, ouviram-se assobios. Razão? Pedro Gonçalves não permitiu a redenção aos olhos do público de dois jogadores que esse mesmo público tinha precipitadamente condenado.
O Sporting é um clube que me surpreende a cada dia. Ontem, a ganhar por 4-0 ao SC Braga, depois de uma exibição segura e competente, os leões tiveram um penalti a seu favor. Já se jogavam os descontos. Avançou Pedro Gonçalves, que é o primeiro batedor da hierarquia e o melhor marcador da equipa. O público não queria – e começou a gritar, dizem uns que por Esgaio, autor de uma bela partida no rescaldo da saída de Porro, alegam outros que por Chermiti, que se estreava a titular e também esteve bem, ainda que com variantes face ao habitual jogo do titular. De caminho, assobiaram o jogador que acabou por fazer o 5-0 final e por igualar Taremi e João Mário no terceiro lugar da lista dos goleadores, porque ele não quis ceder a vez. O que é espantoso – mesmo que não possa ser comprovado – é que acredito que boa parte dos que ontem deram este espetáculo terão sido os mesmos que há uns meses infernizaram a vida a Esgaio e o forçaram a fechar as redes sociais por causa de uma sucessão de maus jogos. E que outra parte – talvez até os mesmos... – foram os que infernizam a vida a Paulinho e, por arrastamento, a Rúben Amorim, porque o avançado que o treinador quis trazer de Braga “não marca golos” e porque o treinador o protege tanto que nem quis ficar com Slimani, por entender que se o argelino ficasse havia o risco de lhe roubar o lugar. Mais: Rúben Amorim nem quis agora mais nenhum jogador para a posição, porque disse que estava satisfeito com... Chermiti. A piada faz-se a si mesma, mas eles é que não são capazes de rir. Só espumam pela boca. O vírus está espalhado. É um vírus que só permite andar no futebol pela negação e pelo ódio. Como ontem não podiam negar ou odiar Esgaio e Chermiti, estes infetados viraram-se para Pedro Gonçalves. E como ele não lhes fez a vontade, as redes já se enchem de posts segundo os quais ele é “um cepo sem talento”, sem “compromisso”, sem “intensidade”. Vamos a ver se nos entendemos. Pedro Gonçalves não voltou a ser o jogador que foi no ano do título, em 2020/21, época que acabou com 23 golos em 37 jogos oficiais. Mas no ano passado fez 15 golos e 11 assistências em 41 partidas. Esta época, em que já o acusam de estar mal, vai com 12 golos e sete assistências em 29 desafios. Tem sido, até pela necessidade de recuar no campo, dos jogadores mais importantes nas poucas coisas que os leões têm feito bem esta temporada (e deixo até aqui um dos gráficos que não aproveitei na crónica analítica do Sporting-FC Porto da final da Taça da Liga, para que possam ver uma das facetas em que ele mais influi no coletivo e para vos abrir o apetite para a análise do jogo de ontem, que estará disponível ao fim da tarde de hoje para os subscritores Premium). Isto do futebol funciona muito melhor com jogadores a jogar, treinadores a treinar, adeptos a apoiar, dirigentes a dirigir e jornalistas a reportar e a analisar. No dia em que os adeptos decidirem quem é que marca os penaltis, apago a luz, fecho a porta e vou à minha vida.
Vender a perder. Não creio, mesmo, que o Benfica pudesse ter feito mais do que fez no caso de Enzo Fernández. Rui Costa esticou a corda até aos 120 milhões de euros da cláusula de rescisão, mas teve de fazer o negócio num momento em que não queria, imposto por um contexto intrinsecamente vendedor, que explica a vontade do jogador ir embora já – pois se ele até quando chegou vinha a pensar nisso... E sorrio, entre a pena e um bocadinho de vergonha alheia, quando vejo os “twists”, tanto de situacionistas profissionais que de repente entendem que o Benfica até saiu fortalecido, porque o mesmo jogador que defendiam até à insanidade afinal não era digno de usar o manto sagrado, como de oposicionistas constantes, que atacam pelo facto de boa parte do dinheiro resultante da transferência acabar por sair do clube. Compreendo as críticas da oposição ao pagamento de comissões “num negócio que o clube não queria fazer”. Entendo que em abstrato faria bastante mais sentido que essas comissões de intermediação fossem pagas pelos principais interessados, que serão o jogador e o clube comprador, mas a situação concreta e recorrente do mercado português já instituiu que do lado de cá há sempre interesse em vender, porque é a vender que se garante a sobrevivência face a um quotidiano que é deficitário. Enquanto andarem a perder dinheiro na gestão corrente, os clubes portugueses são sempre também – por mais que vão dizendo o contrário – um dos principais interessados nos negócios que permitem que se chegue ao fim do ano e as contas batam mais ou menos certo. E para o entendermos melhor atentemos na lista das vendas mais caras da história do Benfica. Ainda hoje o Record voltou a publicá-la, atualizada. Quatro dos seis jogadores que mais renderam à saída do Benfica foram vendidos após anos em que o clube não foi campeão. Falo de Witsel, Rúben Dias, Darwin Nuñez e Enzo Fernández. Estes dois últimos trouxeram quase 200 milhões de euros numa altura em que o Benfica, já não é só não ser campeão: não ganha nada há três anos. Esta capacidade para vender a perder é surpreendente e, não, não tem rigorosamente nada que ver com o “hype” que os adversários acusam os jornais e as TVs de criar. Mas se calhar ajuda a explicar por que é que os clubes portugueses pagam comissões.
Como é difícil ser árbitro. Não incluí os árbitros no parágrafo de abertura, aquele acerca das tarefas que cada um tinha de desempenhar. Pois os árbitros estão lá para apitar. E como é difícil ser árbitro... O árbitro ideal tinha de viver numa redoma, não ler nada, não ouvir nada, não falar com ninguém durante a semana e entrar em campo sem saber sequer que equipas ia dirigir ou quem eram os jogadores em campo. Estes tinham de entrar mascarados, como o Enigma 69 da Kings League de Piqué, e os árbitros precisavam de viver numa redoma, numa cápsula de criopreservação que impedisse qualquer influência externa. Descongelávamo-los para apitar e a seguir voltavam para lá. Porque basta serem humanos e andarem aí para assistirem ao clima geral que se cria para se aumentar exponencialmente o risco de decidirem mal. Se numa semana há um mais compreensivo, faz-se logo barulho e há a possibilidade séria de na semana seguinte aparecer um que se torna demasiado inflexível, quanto mais não seja porque o seu subconsciente lhe diz que é assim que tem de ser. É claro que depois há quem aproveite melhor e quem aproveite pior este fenómeno, que há clubes e jogadores especializados nesta arte subterrânea e outros que se deixam comer, mas não deixa de ser curioso que os que mais chinfrineira fazem a queixar-se sejam aqueles que mais contribuem para que o exercício da arbitragem esteja cada vez mais impossível de levar a cabo.
O que falta a um grande português como o Sporting para ter mais adeptos a assistir aos seus jogos tal como as equipas alemãs, inclusivamente inferiores?
Ontem a única coisa que faltou ao Sporting foi ter um opositor!