As razões do crescimento
Portugal encara o Europeu com expectativas de conseguir um troféu. E entre as razões para o crescimento da nossa seleção está a globalização de que tanto nos queixámos noutros tempos.
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Na última edição do Futebol de Verdade, na sexta-feira, um de vós questionou-me acerca da possibilidade de esta ser a geração mais capacitada de sempre para ganhar um Campeonato da Europa por Portugal, sobretudo no plano da confiança em si mesma, e eu admiti que sim, que o é. Porque tanto a geração dos anos 80, a que tinha Chalana, Jordão e Jaime Pacheco, como a do final dos 90 e do início do século, aquela a que na altura se chamou a “geração de ouro”, com Figo, Rui Costa e Vítor Baía, tinham talento a rodos mas também viam cair sobre elas o peso incomportável do falhanço recente. Esta não. Esta geração está cheia de craques e os seus componentes cresceram a ver a seleção nacional discutir meias-finais de grandes competições e não a chorar as eliminações em fases de apuramento. O que, cruzado com o estudo feito pelo Sindicato dos Jogadores Profissionais de Futebol acerca da percentagem de estrangeiros na nossa Liga, nos mostra como estávamos tão enganados ao fazer desse aspeto uma preocupação séria. Aliás, tão enganados que nem me ocorre uma razão para se medir o que está a medir-se agora.
O Mundo mudou muito nos últimos anos, mas aquilo que diz o estudo do sindicato, que o Record divulga nas suas páginas de hoje, já se percebia quando a geração de ouro ganhou os dois mundiais de sub20 sob as ordens de Carlos Queiroz, em 1989 e 1991. Mais de metade (57 por cento) dos 283 jogadores utilizados, em média, em cada jornada da nossa Liga nesta época são estrangeiros. Por aquele tempo, no final dos anos 80 e início dos 90, olhava-se para os componentes da “geração de ouro” e começava por se temer que eles não conseguissem sequer afirmar-se nas equipas principais dos seus clubes, porque os dirigentes e os técnicos preferiam produtos acabados e de consumo imediato, que podiam encontrar no estrangeiro a baixo custo, mesmo que muitos acabassem por fracassar e ser devolvidos. Quando se tratava de avançados, então, a coisa agravava-se: vinham camionetas de búlgaros com capacidades exóticas de finalização, aviões de brasileiros capazes de bater o recorde mundial de fintas consecutivas sem sair do mesmo sítio, comboios de magrebinos ou subsaarianos de futebol perfumado ou cabedal capaz de inibir qualquer um de sequer pensar num encosto ou num corpo-a-corpo. E a angústia alastrava: quem vai ser o nove da seleção?
Foi assim em 1996, no ano em que voltámos a uma fase final, a do Europeu inglês, e nos faltava a arte para fazer golos face ao enorme volume futebolístico daquela equipa. Falhámos 1998 e voltámos em 2000, para jogar uma meia-final muito graças a um mês tão excelente como inesperado de Nuno Gomes, titular por causa do castigo de Pauleta. Faltava-nos o ponta-de-lança e não era só por cá que a culpa deste tipo de deficiências era posta nos estrangeiros a que os clubes recorriam para solucionar mais depressa os problemas. Este era um tema global. E isso vê-se também quando viramos a mesa ao contrário. Enquanto não houve mobilidade – e vamos colocar aqui uma barreira no caso Bosman, em 1995 –, Portugal jogou três fases finais em 24 possíveis, entre Europeus e Mundiais. Todos os convocados para os Mundiais de 1966 e 1986 e para o Europeu de 1984 jogavam o nosso campeonato. Em 1996 já fomos com cinco em 22 a jogar no estrangeiro – Couto no Parma, Sousa na Juventus, Figo no FC Barcelona, Rui Costa na Fiorentina e Cadete no Celtic. Em 2000 já eram 11 em 22, isto é, metade. E em 2006 tivemos pela primeira vez uma seleção com maioria de emigrantes na convocatória: já só havia oito em 23 a jogar a nossa Liga.
Há muitas explicações possíveis para o crescimento da nossa seleção, que desde a sentença Bosman marcou presença em 14 de 15 fases finais. Sim, o desmembramento do leste levou à destruição de seleções poderosas, como a da URSS e a da Jugoslávia. E sim, a mercantilização do futebol levou ao aumento do número de participantes em cada fase final, mas falhámos o Mundial de 1998, já com 32 seleções presentes. E serão estes fatores suficientes para explicar a evolução de 12,5 por cento de apuramentos pré-Bosman para os 93,3 por cento depois da sentença que liberalizou a circulação de jogadores pelos diversos campeonatos? Não creio. Há uma série de razões a explicar o crescimento da seleção portuguesa nos últimos 20 anos e pela sua identificação é possível não só perceber o que nos atrasava antes e aquilo que temos a obrigação de evitar que volte a suceder daqui para a frente. Uma delas é incontrolável: não é possível garantir que apareça outro Cristiano Ronaldo. E quando menciono o CR7 não é só pelo que ele deu à equipa em campo, mas sobretudo pelo que a sua presença significou em termos de receita, de poder negocial antes dos contratos, de intimidação aos adversários e de crença nas nossas próprias capacidades. Mas as outras não o são. Portugal cresceu enquanto seleção porque os seus jogadores têm hoje muito mais Mundo do que tinham há 20 anos, seja porque lhes foi dado o enquadramento competitivo conveniente desde mais tenra idade, com a melhoria dos quadros competitivos dos escalões jovens – provavelmente a ideia mais importante que ficou do projeto Queiroz – e a inclusão das equipas B nas Ligas profissionais, seja porque os melhores puderam conhecer e evoluir noutras realidades mais exigentes do que a nossa.
Se projetarmos o onze-base da seleção nacional no próximo Europeu fica difícil imaginar mais do que dois jogadores da nossa Liga: Diogo Costa e um dos defesas-centrais, seja ele Pepe, António Silva ou Gonçalo Inácio. Regra geral, todos já foram campeões, cá e lá fora. Muitos já ganharam a Champions. Têm qualidade e acrescentam-lhe a crença insuperável nas próprias capacidades e nas da equipa, uma crença que nasce muito no facto de nunca terem visto esta equipa fraquejar antes das decisões. Portugal entrará neste Europeu como uma das sete ou oito equipas que o podem ganhar. Depois se lá chega ou não, isso já depende daquele mês. Porque, como bem vimos em 2016, em sete jogos, quatro deles por eliminação direta, não há a mínima garantia de se apurar a melhor equipa.