As estrelas e a coerência transversal
O Benfica deixou na Champions lampejos de talento e mostrou na Youth League que tem futuro, mas continua a ter um problema de coerência transversal que FC Porto e Sporting já parecem ter resolvido.
Darwin Nuñez deixou ontem a Liga dos Campeões com mais um golo ao Liverpool FC, num belo empate a três bolas que o Benfica arrancou em Anfield, e teve direito a ser considerado “impressionante” pelo Daily Telegraph e “elegante” – será a melhor tradução para “classy” – pelo Guardian de hoje, mas vai terminar mais uma época sem títulos e, a confirmarem-se as vozes de mercado que o dão como fora do clube a partir do Verão, sairá sem ganhar nada além da provável distinção como melhor marcador da Liga portuguesa de 2021/22. O dia de ontem já incluíra mais uma “destruição” dos sub19 do Benfica à equipa do mesmo escalão do Sporting (4-0 nos quartos-de-final da Youth League), permitindo aos meninos de vermelho mais uma presença na Final Four da competição, depois de terem atingido três vezes o jogo final durante a última década.
Os dois factos não terão à primeira vista muito que ver um com o outro, a não ser pela capacidade de motivar o debate em torno de coisas que eles, em si, não explicam. Como é que o Benfica está como está na Liga – a 15 pontos do FC Porto e a nove do Sporting – se depois se bate com o Liverpool FC e elimina Ajax e FC Barcelona nas competições europeias? Como é que o Sporting não é capaz de ganhar um único jogo ao Benfica em sub19 desde 2017 se daí para cá passaram pela equipa de juniores leonina jogadores que até já foram campeões nacionais pela equipa principal, como Gonçalo Inácio, Tiago Tomás, Eduardo Quaresma, Nuno Mendes, Luís Maximiano ou Dário Essugo? A questão é que os títulos nascem da coerência do trabalho e se o trabalho do Benfica é mais coerente na formação, o do Sporting ganha essa coerência de forma transversal, alargando-se ao plantel principal. Os leões, na formação, apostam num modelo que dizem “centrado no jogador”, que é um pouco aquilo que o Benfica tem vindo a fazer mais acima. E a questão é que quem ganha os campeonatos não são os jogadores – são as equipas. Por isso o Sporting não ganha abaixo. Por isso o Benfica tem tido dificuldades para ganhar acima.
A superioridade da equipa de sub19 do Benfica sobre a do Sporting foi claramente expressa nos números do resultado final do jogo de ontem. Esta época, foi a terceira vitória das águias sobre os leões – e a mais expressiva –, às quais há a somar um empate. Vendo o jogo, verifica-se que há uma equipa trabalhada e outra mais entregue ao talento individual. Que há uma equipa homogénea e outra muito desigual, com talentos inquestionáveis e elementos que nunca passarão do futebolisticamente sofrível, embora sejam fisicamente interessantes. É um risco dizer isto com base num jogo – e eu ainda não tinha visto mais nenhum com “olhos de ver” – mas o que vi ontem, somado ao registo recente de resultados, permite-me garantir que o Benfica sub19 não é só melhor equipa do que o Sporting sub19 – é muito melhor equipa. E no entanto vejo ali potencial em três ou quatro leões para se afirmarem na equipa de Rúben Amorim – Gonçalo Esteves, Rodrigo Ribeiro, talvez Dário Essugo e Mateus Fernandes... – e já tenho dificuldade em adivinhar naqueles miúdos do Benfica a possibilidade de transporem a fasquia para a equipa principal.
Porque lhes falta qualidade? Não. Diego Moreira é um extremo de grande nível, completo e com capacidade ofensiva e defensiva. Martim Neto é um centrocampista de qualidade muito acima da média. Tomás Araújo um defesa-central forte nos duelos e com qualidade na saída de bola. A questão é que ao Benfica tem faltado sempre coragem para dar a última pincelada no processo de formação: a alocação de espaço no grupo principal. De que serve formar bem se depois os miúdos saem dos sub19 para os sub23 e para a equipa B e, quando chega a altura de poderem jogar na equipa principal, têm cinco homens à frente deles na luta por uma posição? A equipa B do Benfica andou à frente da II Liga este ano – e a equipa B do FC Porto até ganhou esse escalão há uns anos, mas na verdade só aproveitou um jogador desse grupo, que foi André Silva – mas, como muito bem me recordou Luís Castro, atual treinador do Botafogo e antigo responsável pela formação do FC Porto, neste trabalho que fiz sobre as gerações desse FC Porto B e deste Benfica B, “a qualidade coletiva não tem de ser sinónimo de afirmação individual”.
Não sou defensor de protecionismos, de impor por decreto que têm de jogar x ou y miúdos formados localmente, mas um clube ganha mais se entender que o processo de formação só termina quando os miúdos atingem o patamar superior – e que se não há sequer espaço para lá aparecerem eles nunca vão afirmar-se e o dinheiro gasto na sua formação acaba por ser dinheiro deitado à rua. É a repetição do fenómeno que esteve na origem daquele a que já chamei o “paradoxo Moutinho”, na altura explicado por necessidade e hoje replicado por razões estratégicas. A coerência e homogeneidade que sobra ao Benfica nos escalões de formação e depois lhe vem faltando na definição do grupo acima, encontra-o o Sporting de Amorim de forma transversal, no modo como limita os números no plantel principal. Também já tinha escrito sobre o tema aqui, confrontando a escassez estratégica de Rúben Amorim com a exigência permanente de Jorge Jesus. É claro que a política leonina é arriscada, que não garante sucesso. Da mesma forma que é possível chegar aos títulos por outro caminho, como o provou Jorge Jesus, por exemplo, com a equipa de 2010, campeã com David Luiz, Saviola, Aimar, Ramíres, Cardozo ou Di Maria e zero jogadores formados em casa entre os mais utilizados. Muitos daqueles jogadores deram milhões a ganhar e permitiram ir buscar mais jogadores que podem garantir sucesso desportivo e mais milhões.
A questão aqui é de coerência e de convicção. É de se escolher um caminho e não o outro. Enquanto andar preso entre duas estratégias que se negam uma à outra, na aposta na formação abaixo e na sua negação acima, o Benfica vai ter dificuldades em explicar como é que tem tanto talento em todos os escalões mas vai em Agosto assinalar três anos desde o último título conquistado – a Supertaça, ainda com Bruno Lage aos comandos e com Rúben Dias, Ferro, Nuno Tavares, Florentino e Jota entre os 14 jogadores chamados ao campo. Entretanto, o Sporting foi campeão com muitos miúdos que não ganharam o campeonato de juniores e o FC Porto segue isolado na frente por ter finalmente encontrado o espaço para os miúdos que lhe ganharam a UEFA Youth League de há três anos.
É sempre melhor crescer com vitórias, mas a função principal dos escalões de formação é preparar jogadores para o plantel principal. Mas a aposta em gente da casa, à exceção do Porto deste ano e do Sporting desde que chegou Amorim, só acontecia, em Portugal, quando os clubes a isso eram obrigados por falta de dinheiro. Só a mudança de paradigma pode mudar este tipo de estratégia. Que até pode não ser aquela que os clubes pretendem. Não há um caminho único para o sucesso. Agora, não se pode é andar a vender uma formação como a melhor do universo e depois não dar a oportunidade aos miúdos. Isso é incoerência. Absoluta.
Estou totalmente de acordo com o que é dito relativamente às estratégias de cada clube e à maior qualidade da equipa do SLB. Tenho visto algumas vezes os sub-19 do Sporting e sempre tenho achado que apesar de haver alguns bons valores, há um nível global baixo, até na forma de se trabalhar, estando sem dúvida mais virados para o crescimento individual dos jovens com potencial. Este também só é possível se aqueles estiverem adaptados ao modelo que lhes é pedido nos escalões superiores. Algo que não acontece com os talentosos jogadores do SLB, pois até o modelo de jogo utilizado nos escalões inferiores está longe daquele que se pretende para a equipa principal.