As convicções de Schmidt
O que transformou João Mário de ídolo sacado ao rival em bode expiatório dos adeptos insatisfeitos com o futebol do Benfica? As razões estão na busca do equilíbrio que Schmidt perdeu há ano e meio.
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A conferência de imprensa de Roger Schmidt após o jogo do Benfica com o Estrela da Amadora foi, julgo que pela primeira vez esta época, um momento verdadeiramente clarificador, não somente acerca do mercado, como das convicções do treinador. Dela sobressaiu a questão da vontade expressa pelos jogadores, como por exemplo no caso de João Mário, que diz Schmidt está a estudar a possibilidade de sair, mas também muito o tema das convicções do treinador, que reafirmou querer jogar como tem jogado, com dois médios essencialmente posicionais, como são Florentino e Barreiro, e dois jogadores com rotina de centrocampistas na linha de apoio ao ponta-de-lança. E se, naturalmente, isso depois se reflete naquilo que é a vontade dos jogadores – Neres, João Mário... –, há que entender todo o processo dinâmico que levou o treinador a formar estas convicções. Porque as escolhas dele nem sempre foram estas. Aliás, nos primeiros meses eram diferentes.
O tema do futebol apresentado pelo Benfica não pode, nunca, ser visto de forma casuística ou isolada no tempo. Os diferentes casos, os momentos de forma superlativa e os de sub-rendimento, estão todos ligados, porque é de uma equipa que se trata, do tal organismo vivo que funciona por vasos comunicantes. Vejamos o caso de João Mário. Disse Roger Schmidt antes do jogo: “Foi muito importante nos últimos dois anos”. E tem razão. O alemão trouxe até dados para suportar a ideia – “tem à volta de 50 golos e assistências” [são 48] –, mas não se aventurou sequer a explicar porque é que João Mário se transformou de ídolo sacado ao rival no jogador que as bancadas da Luz agora assobiam como saco de pancada sempre que a equipa trava. Foi ele que mudou? Ou foi a equipa? Vinte desses golos e assistências (42 por cento, quase metade, portanto) surgiram nos primeiros seis meses destes dois anos de João Mário com Schmidt. Se a posição dele foi sempre aquela, avançado interior por uma das faixas, o que é que mudou no Benfica para que as suas caraterísticas deixassem de funcionar ali? A resposta é simples e leva-nos ao tema do meio-campo, acerca do qual Schmidt também falou, quando defendeu Florentino e Barreiro. “São fantásticos a pressionar, a roubar bolas e a ganhar as segundas bolas”, especificou. A questão é que nem sempre foi isso que Schmidt quis dos médios. E não era só isso que lhe dava, por exemplo, Enzo Fernández, cuja saída, em Janeiro de 2023, coincidiu com a quebra de João Mário.
O equilíbrio da equipa de Schmidt foi sempre o mesmo: dois médios mais posicionais, três atacantes nas costas do ponta-de-lança. Os dois médios começaram por ser Florentino e Enzo – e a coisa funcionava, permitia depois ter Rafa atrás do ponta-de-lança, que era Ramos, com Neres de um lado e João Mário do outro. Um avançado que dominava as diagonais e baixava em apoio, um segundo avançado com capacidade de aceleração com bola, um médio criativo, simplificador, com atenção aos equilíbrios, num dos lados, e um desbloqueador, um agitador no um-para-um, do outro, tudo suportado por um meio-campo com um jogador que nunca perdia as referências (Florentino) e outro com capacidade de esticar o jogo com bola (Enzo). Quando saiu Enzo, o Benfica tremeu. Ainda foi campeão, mas teve uma segunda metade de época muito abaixo da primeira. Depois, nunca, em toda a época passada, Schmidt voltou a dar à equipa o futebol com que ela se impôs naqueles primeiros seis meses. Nem com as incorporações de João Neves e Kökçü a meio-campo ou de Di María na frente – e, mais uma vez, isto não só volta a estar tudo ligado como parte do regresso a casa do extremo argentino. A chegada de Di María levou o treinador a tentar compatibilizá-lo com Neres, o desbloqueador que já tinha sido sacrificado na segunda metade da primeira época. E o Benfica passou de um onze que tinha Neres e João Mário como avançados interiores para um onze com João Mário e Aursnes – menos brilho ofensivo, mas mais equilíbrios, a defender a vantagem na Liga – e, depois, para um onze com Di María e Neres – mais brilho ofensivo, mas desequilíbrio total e permanente nos momentos sem bola. Foi a noção de que não poderia ter os dois ao mesmo tempo que levou Schmidt a “deixar cair” Neres e o jogador a perceber que para ter futuro tinha de o procurar longe da luz.
Aí, de facto, entra a vontade do jogador. Schmidt disse repetidamente que Neres queria sair – e é provável que isso tenha mesmo acontecido. Como é provável que a vontade do extremo brasileiro tenha partido da consciencialização de que, com a permanência de Di María para um segundo ano, seria sempre segunda escolha, porque Schmidt iria procurar a fórmula dos primeiros seis meses, com o argentino e Aursnes ou João Mário. O problema é que os efeitos nefastos dessa tentativa de compatibilização de Neres com Di María se estenderam até ao meio-campo. Na época passada, o que se via era um Benfica curto defensivamente se por ali jogavam Kökçü e João Neves e pouco capaz a atacar se por lá estavam João Neves e Florentino. Isto, aliás, até levou a crer que o jovem entretanto transferido para o Paris Saint Germain não tivesse as competências atacantes para ser referência na posição, mas a verdade é que ele em dois jogos do campeonato francês já fez quatro passes de golo – e somava apenas dois em 75 partidas pelo Benfica. É bem provável que, face ao desequilíbrio que via à sua frente, João Neves se encolhesse ofensivamente. Kökçü não fazia a mesma coisa, mas as dificuldades que passou quando integrou a dupla de médios levaram-no a dar um empurrãozinho ao treinador e a dizer, em entrevista dada na Holanda, que não queria jogar mais por ali. Neves teve de ser sacrificado à necessidade de mais-valias no mercado, Kökçü anda a jogar como avançado interior, posição para a qual, ainda por cima, Schmidt perdeu neste início de época Di María, lesionado. E tudo o que o treinador tem feito após o descalabro de Famalicão é tocar a reunir em torno de uma ideia mais segura do que empolgante.
Continuo convencido de que Neres poderia ser muito útil ao Benfica – e nem precisaria de ver a assistência para golo que ele fez na estreia pelo SSC Nápoles. Mas a junção da permanência de Di María com as ideias do treinador levou-o a querer sair. Continuo convencido de que a melhor posição para Kökçü no 4x2x3x1 de Schmidt é na dupla de médios, de onde pode dar à equipa a capacidade de esticar o jogo através da sua visão e da sua execução que ela não tem desde a saída de Enzo – e sim, sei que são, em tudo o resto, jogadores muito diferentes. Mas a experiência com quatro homens defensivamente inaptos à frente dele durante boa parte da época passada levou-o a nem querer ouvir falar de lá voltar, a ponto de arriscar a rotura com o treinador ao assumir isso mesmo em entrevista não autorizada. O melhor Benfica de Roger Schmidt dificilmente passará pela junção de Florentino e Barreiro a meio-campo. O alemão terá mesmo de encontrar maneira de meter ali um elemento diferenciador, seja ele Kökçü, se o convencerem, Renato Sanches, se recuperar a explosão de outros tempos, ou Rollheiser, se se adaptar à posição. Além disso, o melhor Benfica de Schmidt dificilmente deixará de ter um desequilibrador e um simplificador entre os avançados que jogam por dentro. Sem Neres, o primeiro tanto pode ser Di María como Schjelderup, nalguns jogos até pode ser Tiago Gouveia, mas dificilmente será Prestianni, que o treinador vê a acelerar o jogo por dentro, como viu em relação a Rafa – e nisso não se enganou. João Mário poderia perfeitamente ser o segundo, se a falta de chama do outro lado não fizesse cair sobre ele o ónus da impreparação ofensiva de todo o setor.
Para aqui chegar, o Benfica teve de sacrificar jogadores no processo. E foi em relação a isso que a conferência de imprensa de Roger Schmidt foi absolutamente clarificadora. É que não é normal que um jogador seja tão elogiado à sexta-feira e julgado dispensável – a ponto de se admitir a sua saída sem grande ganho para o clube – ao sábado. E é este o maior motivo para os benfiquistas estarem preocupados.
Acabei de saber do falecimento de um GRANDE HOMEM DO FUTEBOL
SVEN GORAN ERIKSSON.
RIP🙏🙏🙏