A vitória do humanismo
Será que não existe um "ancelottismo", como nunca terá havido "fergusonismo"? Carlo Ancelotti tornou-se o primeiro a ganhar as cinco grandes ligas e fê-lo com uma enorme capacidade adaptativa.

Carlo Ancelotti, que já era um dos poucos a ter ganho a Liga dos Campeões como jogador e treinador, tornou-se neste fim-de-semana o primeiro técnico a vencer as cinco grandes Ligas, ao garantir o título que lhe faltava, o de campeão espanhol, com o Real Madrid. Aos 62 anos, este italiano de ar sempre bem disposto, que gosta de cantar Adriano Celentano e parecia estar a gozar o momento de uma vida quando os jogadores madridistas o faziam saltar no ar, sobre o grupo, confirmou que é um dos mais bem sucedidos da história do futebol mundial. E, no entanto, não tem um estilo vincado. Não há um “ancelottismo” – como nunca houve, por exemplo, um “fergusonismo”. O que há é uma capacidade de triunfar acima de todas as circunstâncias, um calmo humanismo que o leva a ser capaz de compreender os grupos e tirar o melhor de cada um, um poder adaptativo que faz dele o contrário do treinador com uma ideia que toda a gente procura na modernidade. A ideia de Ancelotti é cheia de modéstia – e isso também funciona.
Na Gazzetta dello Sport de ontem, num artigo cheio de superlativos absolutos, Arrigo Sacchi lembrava a segunda mão de uma meia-final da Taça dos Campeões, contra o Real Madrid, em que perdera Evani, o médio-esquerdo do Milan, e optou por lá colocar Ancelotti. “Parecia um contrassenso, porque ele não era veloz”, recordava. “Não era veloz de pernas, mas era-o de cérebro. Pensava antes dos outros e chegava sempre primeiro à bola”, lembrou o treinador de Fusignano, que nessa noite viu a aposta recompensada, uma vez que Ancelotti até fez o golo de abertura nos retumbantes 5-0 que colocaram os “rossoneri” na final de 1989 – a primeira mão, no Bernabéu, tinha acabado empatada. Alessandro Costacurta, que jogou esse jogo e depois fez parte do plantel que Ancelotti levou à conquista do scudetto, em 2004, já como treinador, destaca como qualidade do atual técnico do Real Madrid a “capacidade para se adaptar às situações e depois geri-las com calma, paciência e humildade”. “É uma boa pessoa antes de ser bom treinador”, realça.
É muito graças a esta capacidade de adaptação que não há um “ancelottismo”. Carlo é uma arma à disposição dos que defendem que os treinadores devem adaptar-se aos plantéis que têm, porque sempre soube fazer aquilo que os grupos “recomendavam”. Sendo verdade que também teve sempre muita qualidade à disposição... Naquele Milan de 2004, por exemplo, puseram-lhe um rótulo de treinador “defensivo”. O próprio Silvio Berlusconi, à data dono da equipa, chegou a dizer na “Domenica Sportiva” da RAI que o seu treinador tinha de “ousar mais”. “Um presidente, sobretudo se percebe de futebol, como eu, tem de mandar na filosofia. O Milan tem de atacar sempre. Por isso, de hoje em diante, jogaremos sempre com dois pontas-de-lança”, sentenciou o homem que depois até chegou a ser primeiro-ministro de Itália. E o que fez Ancelotti? Adaptou-se. Não mudou a equipa, mas passou a considerar Kaká um avançado e não um médio-ofensivo, pelo que com o brasileiro e Shevchenko o Milan estava a jogar com os tais dois pontas-de-lança que queria Berlusconi. Sinal de inteligência, mas também da tal modéstia de um treinador que soube levar a sua avante, deixando o presidente ficar com a razão aos olhos do público mas continuando a extrair o que achava mais recomendável do grupo.
Ancelotti foi depois campeão inglês, no Chelsea, em 2010, onde fez da sua equipa a primeira a superar os 100 golos na Premier League neste século – depois disso, o Liverpool FC, uma vez, e o Manchester City, três vezes, também já o conseguiram. Tornou-se, de repente, um treinador ofensivo? Não. Era o que aquele grupo pedia. Da mesma forma que, quando chegou ao Real Madrid pela primeira vez, em 2013, já campeão francês com o Paris Saint-Germain do dinheiro qatari – foi o primeiro treinador do projeto – soube ouvir o que queria Florentino Pérez e fazer exatamente o contrário. O presidente queria uma equipa de posse para fazer frente ao então majestoso FC Barcelona de Pep Guardiola, porque não suportava ficar no lado menos charmoso do debate filosófico-futebolístico em Espanha. Mas Ancelotti olhou para o grupo, viu Ronaldo e Benzema, e decretou o caminho oposto, em tudo semelhante ao que trilhara José Mourinho – menos na picardia, que nisso o italiano não se mete. Não venceu a Liga espanhola, mas ganhou a décima Liga dos Campeões – facto que o deixou no coração dos “madridistas” e serviu para que, já campeão alemão também, pelo Bayern, em 2017, Florentino se tenha lembrado dele outra vez agora, roubando-o ao Everton para assegurar a substituição de Zidane numa altura de crise. Ancelotti respondeu como sempre faz: olhou para o grupo e decretou um caminho que já assegurou o título de campeão espanhol quando ainda faltam quatro jornadas para o fim – tem 15 pontos de avanço – e pode chegar para jogar a final da Champions, dependendo do que suceder na segunda mão da meia-final com o Manchester City de Guardiola, na quarta-feira.
Ancelotti não é o treinador que pede a modernidade, aquele que chega com uma ideia e um manual de procedimentos e recruta jogadores a condizer. Sim, a coerência entre as ideias de um treinador e as caraterísticas dos jogadores é o caminho mais seguro para o sucesso. Mas não é o único. E quando dizemos que não há um “ancelottismo” – ou um “fergusonismo” – talvez estejamos a ver mal a coisa. Alex Ferguson era um líder férreo, uma besta que chegava ao sucesso anulando a identidade dos seus jogadores, suprimindo-lhes os egos e impondo como um bem maior uma espécie de consciência de coletivo – a bota que chutou contra a cara de Beckham, atingindo-o com um piton no sobrolho, é um bom exemplo disso mesmo. Ancelotti fá-lo pelo caminho contrário: anula-se a si próprio, transforma-se num camaleão que se adapta a qualquer grupo, a quaisquer circunstâncias, e dá o palco aos jogadores como artífices do sucesso. Como filosofia, não me parece nada mal.
Olá António,
sou seu leitor e ouvinte há bastante tempo, se bem que raramente comente. Gosto muito de o ouvir no meu leitor de podcasts, prezo a forma como valoriza e analisa o futebol. Dantes ouvia mais episódios, e este parece-me um local apropriado para deixar algum feedback e explicar porque o ouço menos (também por falta de disponibilidade) e deixar algumas recomendações:
1- Há não muito tempo cada episódio durava 30, 35 minutos, excepcionalmente mais de 40. Agora regularmente duram mais de 50 minutos, quase uma hora. Não seria um problema se fosse para o ouvir falar sobre a actualidade, mas muito desse tempo é dedicado a pôr a casa em ordem e a interagir com um grupo restricto da sua audiência, em termos que na maioria das vezes não fazem avançar a discussão. Aliás, quando ainda estava no FB notava-lhe uma tendência para dar demasiada atenção aos "maus alunos", sejam os que deliberadamente interpretam mal, seja por estarem distraídos, ou terem o dedo engatilhado. Acho que um pouco disso é importante, também para reforçar a identificação da audiência com o Futebol de Verdade, mas há um equilíbrio que a meu ver, é regularmente ultrapassado e muito pouco valor adiciona para os "bons alunos".
2 - Outra coisa que consome muito tempo é o "FdV challenge". Não me refiro às perguntas, que são interessantes, mas à descrição do desafio. Julgo que foi há uma semana, no 25 Abril, tive que saltar quase para o minuto 10 para ter futebol, precisamente as perguntas dos leitores.
Este desafio, nos moldes em que está concebido, é excelente se o seu objetivo é interagir com um grupo de 6-10 ouvintes e certificar-se que apenas 2-4 estarão em condições de vencer após 1-2 semanas. Para os restantes é desmotivante pois sabem que não podem competir com ouvintes mais motivados que terão a pergunta engatilhada no momento em que o YT lhes der o tiro de partida. Como alguém que em tempos escreveu uma tese de mestrado sobre o uso de elementos de jogos para engajamento, sugeria-lhe que decidisse quais as acções mais importantes que gostaria que os seus ouvintes tomassem e "desenhasse" o desafio com esses objectivos em mente. Por exemplo, se o objectivo do desafio fossem estes:
- obter perguntas interessantes e relevantes
- motivar os seus ouvintes a participar e ter as suas perguntas respondidas
- baixar a fasquia para participar no desafio, a quem chega tarde, tem uma semana mais apertada.
- mobilizar o maior numero de leitores
Nesse caso poderia desenhar uma competição em que atribuia um ponto por cada pergunta submetida antes do inicio do programa e os leitores precisariam de um minimo de 5 pontos durante todo o mes (vá lá 6, isto é só um exemplo)- e em 3 diferentes semanas, com um sorteio final entre todos os que se qualificassem. E as perguntas lidas seriam as que o António escolhesse como mais interessantes (talvez sempre a primeira para fomentar alguma competição). Parece-me claro que seria mais importante motivar os leitores a participar para contribuir (e ouvir a sua pergunta lida em directo, ego ego ego :) ) do que para ganhar uma competição.
3. Em tempos avalizei a possibilidade de me tornar subscritor premium, mas não consegui justificar para mim próprio a decisão, dado que não tenho disponibilidade para ler muito do que produz. Uma das coisas que me diminuiu o interesse foi, surpreendentemente, o programa VIP que faz todos os meses e que na altura o António publicitava quase sempre, sobretudo com o aproximar da data. Pode parecer estranho, mas para quem não tem interesse em participar, esta oferta pode diminuir o valor do Premium, já que me faria sentir que estava a pagar por algo que não usava. Sei perfeitamente que não é isso que o António pretende, mas nestas coisas o que conta é o que se passa na cabeça de quem está do lado de cá. Não lhe sugiro que termine com o programa, mas talvez encontre uma forma de também "criar valor" para estas pessoas que não têm interesse em participar em directo. Acho que algo já mudou, o enfâse que dá no programa é agora menor, mas como deve calcular pelo tamanho deste email estes comentários meus não nasceram ontem.
4 - Com o decorrer dos anos noto que muda frequentemente de url e de plataforma. Algo que lhe sugira que faça é usar o seu própio endereço sempre que possível. Calculo que o substack lhe cobre para usar uma url própria, recomendo-lhe que no futuro, na medida do possível, use redireccionamentos, eg. tadeia.com/substack - desta forma a url estará sempre sobre o seu controlo.
Tanta coisa e dizia-lhe eu que os podcasts são longos :) Espero que algum possa ser útil.
Um abraço desde Helsínquia.
/António
Ancelotti será o treinador mais subestimado da atualidade. Não tem a personalidade vincada e polémica de Mourinho, a aura de pop star de Guardiola ou Klopp, mas os resultados falam por si. Porque ele próprio não precisa de ser estridente para somar êxitos. É certo que também passou boa parte da carreira em projetos com potencial vencedor, mas teve a arte de concretizar esse potencial. O que não é pouco. Já houve quem conseguisse perder o campeonato de França com o PSG...