A sorte, o azar e a gestão de Ronaldo
Portugal caiu depois de ter feito a melhor exibição e Martínez diz que foi por falta de sorte. Não foi. A equipa ficou entre o sucesso e o fracasso, mas com a certeza de que devia ter feito mais.
A seleção nacional foi eliminada do Campeonato da Europa, caindo aos pés da França no mesmo desempate por penaltis que já lhe tinha permitido chegar aos quartos-de-final, esse limbo entre o sucesso e o fracasso nas grandes competições, e fê-lo na sequência da sua melhor exibição na competição. No final, Roberto Martínez vestiu o sorriso amarelo número 43 do seu extenso catálogo de media training com semblantes a exibir perante a comunicação social, e, depois de despejar a dose usual de conceitos vagos, da “atitude” ao “compromisso”, passando pela “luta”, o “orgulho” e a “personalidade”, sempre em português para gerar boa-vontade, falou de “falta de sorte” para explicar as mais de seis horas de futebol que a equipa leva sem fazer um golo sequer. A sorte e o azar são a mais desajustada das justificações para um resultado de futebol: podem ser usadas para falar de um lance, eventualmente de dois, mas não dos 60 remates que a equipa fez desde que Bruno Fernandes marcou o 3-0 à Turquia. Há aqui um sinal positivo: nesses 364 minutos de jogo – aos quais haveria ainda a acrescer as compensações, não contabilizadas – a seleção não deixou de criar. Muitos desses tiros (23) foram de fora da área, é verdade, mas mesmo assim, ao todo, nesses 364 minutos de futebol, aos 60 remates de Portugal corresponde um índice de golos esperados (xG) de 6.17. Para quem não sabe, o xG contabiliza, em cada remate, a média de tentativas feitas daquele local que dá golo. Não é uma verdade absoluta, é uma métrica com defeitos, mas ainda é a melhor que temos para perceber se uma equipa cria ou não. E Portugal criou. Somou um xG de 0.42 nos 34 minutos finais contra a Turquia, depois dos 3-0. Chegou aos 2.04 nos 90 minutos ante a Geórgia. Com forte contributo do penalti falhado, no desafio com a Eslovénia atingiu os 1.97. E, ontem, na eliminação ante a França, somou um xG de 1.71. Nestas seis horas, Portugal devia ter feito seis golos e não fez nenhum. Se querem encontrar a razão da eliminação, ela não está na sorte nem no azar. Está na incapacidade de transformar volume de jogo em golos – e ao tema voltarei mais à frente. Diogo Costa não defendeu três penaltis no desempate contra a Eslovénia por sorte e não deixou entrar os cinco franceses de ontem por azar. Um penalti, lá está, tem um xG de 0.79. É mais provável que entre do que saia fora ou acabe nas mãos do guarda-redes. Depois, se é marcado ou falhado, já depende de um duelo de competências de conclusão imprevisível. Tão imprevisível que costuma ser má ideia deixar a resolução de uma eliminatória cair para aí: e Portugal fê-lo nas duas últimas partidas. Até o facto de ter ganho uma e perdido outra contribui para acentuar a dimensão de 50/50 de que o desempate acaba por se revestir e é mais uma razão para que uma equipa que tem controlo de jogo faça tudo para evitar cair nele. A avaliação final do percurso nacional neste Europeu não depende tanto da fase que se atingiu – e ainda bem, porque os quartos-de-final são o tal limbo que não é bom nem mau, antes pelo contrário. Aqui chegados, os fatores de ponderação decisivos são o nome do adversário que nos afasta – e a França é uma equipa poderosa contra a qual nunca deslustra perder – e a forma como se perde. Ontem, usando uma estratégia mais adequada do que nos últimos jogos, com Cancelo sempre mais aberto na direita, Bernardo Silva mais por dentro, a dar-se mais ao jogo e a alternar com Bruno Fernandes e Vitinha na tarefa de se aproximar de Palhinha em momento de saída, com Leão claramente esticado na esquerda, sem baixar para defender de forma a melhor explorar cada momento de potencial transição ofensiva, Portugal foi sempre melhor que a França. Teve mais bola, posses mais prolongadas, só tremeu um pouco quando Didier Deschamps chamou ao jogo Dembelé e, depois, Thuram, mas voltou a assumir o jogo com as entradas de Conceição – que permitiu ter Bernardo dentro de forma permanente – e Rúben Neves, a dotarem o meio-campo de uma capacidade de ligação invulgar. Portugal é a seleção com mais posse de bola deste Europeu (64,8%) e a que completou mais passes (3303, mais 354 do que a Alemanha), mas isso de nada serve se depois estiver seis horas em campo a trocar a bola sem fazer golos. E é aqui que é preciso abordar o elefante na sala: Cristiano Ronaldo.
A gestão de Ronaldo. Não tenho medo de o escrever: Cristiano Ronaldo é, no contexto do futebol mundial, maior do que a seleção nacional. É de bom tom dizer-se que nenhum jogador é maior do que a equipa que representa e isso é verdade quando nos focamos em objetivos desportivos, que devem ser sempre coletivos. Mas quem quer que veja os jogos da seleção portuguesa chega a várias conclusões. A primeira é a de que Ronaldo transcende a equipa em tração, visibilidade, capacidade marquetizável, em suma. É dele que se fala em todo o lado, é ele que motiva invasões de campo para as selfies, é ele que causa as reações mais encaloradas no público generalista internacional. Dir-me-ão: “isso não é importante”. Mas é. Não é quando se pensa sobretudo em formar uma equipa ganhadora, mas acaba por sê-lo se entendermos que o futebol é, hoje, um negócio antes de ser um jogo. Podemos gostar disso ou não, mas o facto de acharmos bem ou mal não muda a realidade nem faz o Mundo girar para trás. Outra conclusão é a de que o Ronaldo de hoje está muito longe do jogador que ele já foi. Vê-se isso em cada aceleração, em cada impulsão, em cada remate. O exílio do jogador num campeonato menos exigente, como é o saudita, não é um problema em si – Kanté, por exemplo, chegou ao Europeu em excelentes condições –, mas passa a sê-lo porque contribui para que ele atrase um momento fundamental, que é o da perceção de que já é uma sombra do que foi e de que não tem o poder decisivo que já teve. Na Arábia Saudita, Ronaldo continua a fazer golos em barda e isso leva-o a achar que é o mesmo de há dez anos, a estrela do seu lendário hat-trick à Suécia, por exemplo. E não é. Tudo somado, este cocktail torna Ronaldo ainda mais difícil de gerir no âmbito da seleção nacional. Na última década e meia de seleção, os treinadores foram caindo à medida que iam perdendo a confiança dele. Carlos Queiroz, Paulo Bento, Fernando Santos... Todos souberam o que isso era. E a cada novo treinador, Ronaldo não deixava de dar a sua aprovação através de elogios criteriosamente escolhidos. Uma das principais missões de Roberto Martínez à entrada na seleção portuguesa era a gestão deste dossier-Ronaldo, um jogador que saiu do banco nos últimos dois jogos do Mundial, há ano e meio. E nisso o técnico falhou de forma clamorosa. Não contesto a escolha de Ronaldo como titular desta equipa, até por não ter sido possível ver nenhum dos outros avançados em ação, o que não nos permite ver se eram alternativas melhores ou piores no momento atual. Diogo Jota jogou 97 minutos, nunca como ponta-de-lança, e a Gonçalo Ramos foram dados apenas os 24 minutos de que o capitão “prescindiu” no final do insignificante desafio com a Geórgia. Mas é injustificável que, aos 39 anos, Ronaldo tenha feito 486 minutos de jogo em 18 dias, que não tenha sido poupado na ponta final do desafio com a Turquia – aos 3-0, por exemplo –, que tenha sido, juntamente com Diogo Costa, o único não sujeito a rotação na partida com a Geórgia, e que depois tenha somado quatro horas de competição intensa em quatro dias, nos encontros com a Eslovénia e a França. Isso prejudicou a equipa, porque apesar de ser o jogador mais rematador do Europeu (com 23 tiros), Ronaldo não fez um golo. E, ainda que a sua dimensão planetária – e a falta de um amigo ou conselheiro que lho diga na cara... – provavelmente não lhe permita entendê-lo, também acaba por prejudicá-lo a ele, porque lhe retira frescura, que é ainda mais importante quando se trata de um futebolista no ocaso da carreira.
E agora Martínez? A favor de Roberto Martínez há a noção de que o dossier-Ronaldo só pode ser gerido de forma satisfatória com a colaboração do próprio. A figura do CR7 polariza de tal maneira o mundo do futebol que a cada vez que se sugere sequer que ele descanse num jogo ou numa parte de um jogo logo se ergue o coro dos que consideram essa sugestão um insulto à maior figura do futebol português. “Era o que faltava, o Ronaldo ser suplente”, dizem logo. Juntam-se, de um lado, os que, reconhecidos pelo muito que ele deu ao futebol português, defendem que ele terá de jogar sempre, desde que o queira, e os que, cansados de o ver e sempre sequiosos de novidade, alguns eventualmente até invejosos do sucesso que ele em tempos conheceu, entendem que ele não deverá jogar nunca. Enquanto o próprio não aceitar que é no meio que está a virtude, que pode jogar umas vezes e tem de ficar a ver os outros noutras vezes, não é possível gerir este caso de maneira satisfatória. Martínez não teve pulso? Depende. Depende, primeiro, daquilo que ele quer edificar em termos de modelo de jogo e de construção de grupo. A presença de Ronaldo como ponta-de-lança condiciona a equipa em termos de pressão defensiva, de construção e criação atacante – até porque ele não se limita a ficar na área à espera da bola, quer sempre participar, mesmo quando não é aconselhável. E a sua obsessão permanente com objetivos individuais pode ser uma bomba-relógio num balneário que se quer solidário e coletivo. As justificações públicas que o selecionador deu para a titularidade de Ronaldo no jogo com a Geórgia, por exemplo, fizeram zero sentido – e isso escrevi-o logo na altura, que só a entendia em função do objetivo individual do jogador fazer um golo no sexto Europeu consecutivo. Mas a avaliação de Martínez depende, depois, daquilo que lhe tiver sido pedido. Quando a FPF contratou o espanhol, um treinador que teve problemas com a gestão dos egos no grupo da seleção belga, o que lhe foi pedido no dossier-Ronaldo? Uma abordagem mais conservadora, que não pusesse em causa o equilíbrio nesta constelação de estrelas? Ou uma ideia focada no futuro da equipa e desta geração? Apesar das abordagens estratégicas a meu ver excessivamente complicadas nos primeiros jogos e de uma comunicação pública feita mais no sentido de agradar a todos do que de abordar as reais questões, não tenho nada contra a continuidade de Martínez à frente da equipa. Mas se o que se quer é sucesso, ele só chegará se houver coragem para abordar o dossier-Ronaldo, com o próprio, no sentido da defesa dos interesses do grupo.
O penalti de Félix. Outro jogador que polariza é Félix. Estrela maior do título do Benfica em 2019, aos 19 anos, protagonizou uma das transferências mais caras da história do futebol, ao mudar-se para o Atlético Madrid por 126 milhões de euros. Foi o suficiente para motivar os ataques de adeptos de outros clubes – e o ódio de estimação daí para a frente – e a defesa acérrima por parte dos encarnados. A verdade é que, mesmo tendo sido campeão espanhol com o Atlético Madrid, em 2021, Félix foi nesse ano mais vezes suplente utilizado do que titular. Fracassou no Atlético, devido a incompatibilidade com o contexto tático criado por Simeone, mas também não jogou o suficiente nos empréstimos ao Chelsea e ao FC Barcelona a ponto de motivar estes clubes a acionarem as opções de compra. E na seleção, onde perdeu a vaga de titular para Rafael Leão, continua a ser discutido. Ontem, foi ele a falhar o penalti que deixou Portugal fora do Europeu, o que logo gerou mais uma catrefada de memes, mas a questão não é, de todo, essa. O penalti não foi mal marcado: acertou no poste e uma falha acontece a todos. A questão de Félix na seleção, porém, passa sobretudo pela criação de um contexto que o favoreça. Visto em sentido lato, o futebol de Portugal serve-lhe. Ao contrário do do Atlético, é um futebol de posse, de criação, jogado alto no campo. E é aqui que entra o resto da equipa. Onde joga Félix, nesse contexto? Atrás do ponta-de-lança? E isso já é um problema, porque para isso a equipa já tem Bernardo Silva e até Bruno Fernandes. Podem jogar os três? E juntar-lhe Leão, que é, de todos, o mais diferenciado, porque dá explosão e ataque à profundidade? Pessoalmente acho difícil. E, até por causa dos sucessivos contextos clubísticos negativos que tem vivido, a candidatura de Félix vem neste momento atrás das dos outros. A afirmação de Félix na seleção não depende de um penalti, que, em rigor, pode acertar-se ou falhar-se. Depende de ele ser capaz de encontrar um clube onde mostre futebol de forma regular. Só aí se justificará que, na altura de construir o seu onze, um selecionador olhe para ele como solução e não como alternativa.
Gostei mesmo muito do que escreveu, acabou por me dar razão quando ontem, ainda antes do jogo, coloquei a questão relativamente á questionável forma de como alguns jogadores foram geridos no aspecto físico, já que no aspecto mental o nuestro Hermano já era de opinião de que se tinha de lhes dar carinho, carinho e hierontahuone.
Discordo de uma coisa, uma federacao não tem a função de dar lucro...