A rendição ou o silêncio
Ingleses e galeses renderam-se face ao poder da FIFA e do emir. A braçadeira One Love não saiu do balneário e, no ativismo, ganhou o Irão, cujos jogadores mantiveram o silêncio durante o hino.
No final, mandou quem pode e obedeceu quem deve. As seleções nacionais de Inglaterra e de Gales, cujos capitães tinham mantido até aos últimos dias a intenção de entrar em campo, na jornada de ontem, envergando a braçadeira One Love, em apoio à luta da comunidade LGBTQ, cederam à pressão da FIFA. O coração com as cores do arco-íris só apareceu no braço de jornalistas e comentadores ingleses, tendo os jogadores limitado a sua ação de protesto à genuflexão, que já vem de competições anteriores e da campanha “Black Lives Matter”. Foi o suficiente para que, goleados por 6-2 durante o jogo, os jogadores do Irão se tenham mantido como vencedores para quem liga menos a essas coisas da bola: nem um só abriu a boca para entoar o hino nacional antes da partida, em protesto contra a repressão da revolução social que está em curso no país desde a morte de Masha Amini. O tema mereceu mesmo editorial no Libération, assinado por Dov Alfon.
Vale a pena ler também o artigo de Sean Ingle, no The Guardian, acerca do ambiente vivido no estádio. Partindo da transmissão televisiva, que passou dos “olhares fixos de mil jardas” dos jogadores iranianos durante o hino à imagem de uma mulher que chorava na bancada, Ingle escreve-nos sobre as T-shirts e os cartazes que viu ostentarem a frase “Woman, Life, Freedom” e menciona as possíveis represálias que podem vir a ser sofridas pelos jogadores do Irão, que optaram pela revolta em curso. Mas vai mais longe e vê o lado dos derrotados. Quem? Os ingleses, que recuaram na intenção de utilizar a braçadeira prometida em defesa da liberdade sexual proibida no Qatar. “Na perspetiva desportiva, a decisão é compreensível, uma vez que podia levar à suspensão de jogadores em desafios cruciais. Mas o contraste com a bravura dos jogadores do Irão foi absoluto”, escreve o repórter, secundado por Jonathan Liew na mesma edição do diário britânico. Liew foi igualmente crítico com os futebolistas de Inglaterra, mas não tão bruto como Roy Keane, na ITV. “Se levassem um cartão amarelo, que mensagem teria sido. Tomas o medicamento e segues em frente. Depois, no jogo seguinte, já não a usas, porque não queres ser suspenso. Foi um grande erro”, afirmou o ex-internacional irlandês.
No plano do futebol, o destaque entre os ingleses foi para o início de prova retumbante da sua equipa, acerca do qual escrevi nas Conversas de Bancada de ontem. Os 6-2 ao Irão até levaram o antigo internacional Jamie Carragher a defender, no The Daily Telegraph, que “o Mundial no Inverno é uma vantagem” para a Inglaterra. A Holanda ganhou ao Senegal, mas não convenceu ninguém. A abordagem mais crítica à vitória neerlandesa vem do As espanhol, onde Iván Cordovilla reflete que “Gakpo salvou a ideia de Van Gaal” e refere que o meio-campo laranja é muito instável. Não foi a ideia com que fiquei – a equipa pareceu-me até estável demais, mas as opiniões, já se sabe, têm destas coisas. E vale a pena ler a visão norte-americana, de Andrew Keh, do empate entre os Estados Unidos e Gales, na qual o repórter do The New York Times conta como “um início forte escapa pelos dedos americanos na abertura do Mundial”. “O jogo pareceu, de certa maneira, uma colisão entre ideias esperançosas e um pragmatismo implantado há muito”, escreveu Keh.
Outro tema do dia foi o tornozelo de Leo Messi. Quando acabo de escrever estas linhas já o craque argentino marcou o primeiro golo da Argentina à Arábia Saudita, mas as dúvidas sobre a sua condição física eram ontem enormes. Uma fotografia do tornozelo direito do craque, que aparecia muito inchado, a 24 horas da estreia, causou o alarme, mas Sérgio Maffei, editor do Olé, o principal diário desportivo de Buenos Aires, recorreu a fontes federativas para deixar toda a gente mais tranquila: "o tornozelo não é motivo de preocupação”, assegurou. No link pode tomar o tranquilizante, mas também ver a foto, que é de facto impressionante, tão inchado parece o tornozelo de Leo. O facto de ele estar a jogar, ainda assim, pode deixar margem de manobra a Cristiano Ronaldo para o “xeque-mate” que disse que gostaria de dar ao que foi o seu grande rival internacional nos últimos anos. A conferência de imprensa do CR7 foi explicada no L’Équipe por Régis Dupont, o mais português dos jornalistas desportivos estrangeiros, pelo facto de a Inglaterra entrar em jogo nesse dia e a assistência na sala poder ser “essencialmente nacional”.
Conversas de Bancada
A Ler:
“Didier, je signe tout de suite!”, por Hervé Penot, no L’Équipe, uma entrevista conjunta com Didier Deschamps e Hervé Renard, os dois treinadores franceses que estão neste Mundial como selecionadores, um à frente da França e o outro da Arábia Saudita.
Messi estreia e tem chance final para ser Maradona, por Alex Sabino, na Folha de São Paulo, fazendo o paralelo entre o desafio à frente de Leo e aquilo que foi atingido por Diego na sua carreira.
À la recherche du carré magique, por François Verdenet, no L’Équipe, uma antecipação do que pode ser a conjugação de Dembelé, Griezmann, Giroud e Mbappé no ataque da equipa de França.
Bellingham already a special talent with echo of past masters, por Sam Wallace, no The Telegraph, onde se compara o percurso do jovem médio do Borussia Dortmund com o feito por gigantes como Bryan Robson ou Steven Gerrard.
How Europe decides who wins the World Cup, por Tariq Panja, Elian Peltier e Rory Smith, no The New York Times, abordando a influência da rede de olheiros dos grandes clubes europeus na separação entre vencedores e perdedores no futebol mundial.
Oltre un’ora di recupero in 4 partite! Ma cos’è cambiato?, por Andrea Ramazzotti, na Gazzetta dello Sport, a explicar as razões regulamentares que estão por trás dos descontos que parecem excessivos nos jogos do Mundial.
La neurociência afina a Musiala, por Jorge García, no As, a explicar o trabalho que o atacante alemão está a fazer com Steffen Tepel, um ex-atleta de esqui nórdico convertido em “neuro-treinador”.
“El éxito es hacer que otros tengan éxito”, por Diego Torres, no El Pais, em resultado de uma entrevista por escrito ao selecionador alemão Hansi Flick, na qual o ténico campeão europeu pelo Bayern defende que o futebol precisa de “mais especialistas e menos polivalentes”.
Mabil, la positive gratitude, por Bernard Lions, no L’Équipe, a contar a história do extremo que já passou pelo FC Paços de Ferreira, desde o nascimento num campo de refugiados, no Quénia, à chegada à seleção da Austrália.
Inglaterra se pliega a Infantino, por Santiago Segurola, no El Pais, coluna de opinião que vai da exibição impositiva de uma Inglaterra censurada à condução política deste Mundial pelo presidente da FIFA.
Entenda como Alcorão e lei anti-LGBT se conectam em países islâmicos, por Diogo Bercito, na Folha de São Paulo, uma espécie de manual de comportamento para o Qatar, explicando que não é mau ser gay mas é péssimo parecer gay.
A Ouvir
Dia de jogo da Inglaterra, de Gales e dos Estados Unidos é um dia perfeito para ouvir o ESPN FC, o programa diário da cadeia norte-americana que geralmente se centra muito nas Big Five e no futebol norte-americano. Neste episódio, Dan Thomas, o pivot habitual, teve com ele Kasey Keller, antigo guarda-redes da seleção norte-americana, Craig Burley, o mais incisivo de todos os habituais membros do painel, e ainda o francês Frank Leboeuf. De Doha participaram Sebastian Salazar, o responsável pelo podcast Football Americas, e o sempre equilibrado Nedum Onuoha. O show é sempre ligeiro e divertido, mas não deixa de colocar o dedo na ferida. Sendo que neste caso as feridas foram a situação da braçadeira One Love, o facto de Gareth Bale não se mexer e a oportunidade perdida pela seleção norte-americana para poder dar um passo importante em direção à qualificação sem que Gregg Berhalter tivesse sequer colocado em campo Gio Reyna.
A ver
Argentina-Arábia Saudita, 10h, Sport TV1
Dinamarca-Tunísia, 13h, Sport TV1
México-Polónia, 16h, Sport TV1
França-Austrália, 19h, SIC e Sport TV1