A prática, a moral e o relevante
Na prática, o GD Chaves ganhou fôlego com o golo contra nove, depois da invasão de campo. Moralmente, a ideia é quase repugnante. Mas o relevante está a montante, no investimento em batalhas erradas.
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O regulamento de competições da Liga tem, na sua última versão, aprovada pelos clubes, 212 menções à palavra “segurança”. Vai ao detalhe de agrimensor de estipular o tamanho máximo das bandeiras e das tarjas que podem ir para os estádios fora das zonas especialmente criadas para “malucos”, aquela malta estranha que leva adereços, que a Liga e os sucessivos governos parecem querer extinguir pelo cansaço, numa demonstração de inadequação à realidade e ao que deve e pode ser o espetáculo do futebol. Aparentemente, porque isso tem acontecido com alguma regularidade e ainda na terça-feira ouvi adeptos do Sporting queixarem-se na TV de tal coisa depois do jogo em Famalicão – e é sempre em Famalicão... –, valida a proibição de uma família com crianças ir para a bancada com uma camisola ou um cachecol das cores do clube visitante. A não ser, vá, se forem para a zona dos “malucos” enjaulados. E, no entanto, não é capaz de prever aquilo que se passou ontem em Chaves, um incidente gravíssimo que, a não ser que a via normal dos resultados acabe por decidir noutro sentido, rebentará com as últimas semanas de campeonato no fundo da tabela e com o arranque da próxima época em recursos e contra-recursos.
O GD Chaves venceu em Vizela na última jornada e com esse resultado ganhou esperança de evitar aquilo que já parecia inevitável, que era a descida à II Liga. Entrou nesta 30ª jornada em penúltimo lugar, com 22 pontos, a cinco do antepenúltimo, que terá a escapatória do playoff, a seis da salvação e a sete do adversário de ontem, o Estoril, igualmente embrenhado na luta pela fuga à queda de escalão. No jogo de ontem, marcou primeiro, mas depois deixou que os canarinhos virassem para 1-2. Perder este jogo em casa contra uma equipa que os flavienses queriam trazer para o seu campeonato era como que subir ao cadafalso à espera da queda da guilhotina. Mas quem personificou esse último estertor na luta do condenado pela salvação foram os adeptos flavienses que estavam atrás da baliza estorilista, que a meio do período de compensação (de cinco minutos) invadiram o campo, forçando um confronto com o guarda-redes Marcelo Carné, culpado de tudo e mais alguma coisa, desde defender bolas a perder tempo ou a festejar os golos dos seus. Na sequência da confusão que se gerou, o jogo esteve parado um quarto-de-hora e recomeçou já sem Carné e Pedro Álvaro, bem expulsos porque as regras de bom comportamento mandam dar a outra face e eles não o fizeram. Foi por isso com o Estoril reduzido a nove e o avançado João Carlos na baliza que o GD Chaves fez o golo do empate final (2-2), aos 90+20’.
Se quisermos enquadrar a coisa na moldura regulamentar, que é o que em primeira instância tem de ser feito, está tudo certo. As expulsões foram corretas, porque os jogadores, de facto, responderam de forma agressiva à invasão de campo. E, por mais idiota que seja termos de esperar que um dia aconteça um desastre, uma invasão com sequelas físicas em futebolistas ou árbitros que não podem defender-se, a verdade é que eles não têm esse direito. Tendo o árbitro decidido continuar o jogo – e se devia fazê-lo já é outra conversa –, não me parece que possa haver provimento no desejo do Estoril impugnar o resultado, pelo que os canarinhos não só viram os dez pontos que passariam a ter para a primeira posição de descida direta transformados em sete como encararão parte do que resta de campeonato sem dois pilares da sua defesa, que vão certamente ser suspensos. Se o árbitro entendesse que não estavam reunidas as condições de segurança para que se jogassem aqueles dois minutos e picos que faltavam, o GD Chaves seria certamente punido com pena de derrota, mas como não foi esse o entendimento do juiz, escapará com um ou dois jogos à porta fechada – e, mesmo que haja decisão a tempo, talvez até consiga empurrá-los para a nova época, entre decisões e recursos, para não perder o fator casa nas receções ao FC Porto e ao FC Famalicão. Por isso, a não ser que o Portimonense consiga, nos quatro jogos que faltam, manter os cinco pontos que tem de avanço para os transmontanos e que o Estoril não deixe que os eventos conduzam à perda dos dois que possui de vantagem para a zona de playoff, estaremos perante um caso em que o crime acabará por compensar.
O problema prático a enfrentar será, nesse caso, o das contestações que os eventuais lesados levarão à justiça desportiva para serem ressarcidos, o que pode levar ao arrastamento da data de definição dos participantes nas próximas edições dos campeonatos profissionais. Mas há aqui mais dois problemas: o moral e o de fundo. Do primeiro já vos escrevo desde o início deste texto. O segundo é aquele que ninguém parece querer trabalhar.
Já nos livrámos dessa abencerragem que era para vir a ser o cartão do adepto, que visava a cadastragem dos delinquentes cuja única atividade ilícita era serem adeptos de futebol. Nada impede as autoridades de identificar e banir por uma larguíssima temporada os cidadãos que ontem invadiram o campo em Chaves – e não só não é preciso nenhum cartão do adepto para isso, basta o cartão de cidadão, como espero mesmo que tal venha a suceder. Falta agora que a Liga, a Federação Portuguesa de Futebol e o governo entendam que têm estado a apostar nas batalhas erradas. Esta é uma guerra que só se ganha a médio e longo prazo e de forma muito diferente da que tem sido adotada. Esta é uma guerra que não se ganha pela repressão preventiva mas sim pela formação. Porque a mim ninguém me convence que formar adeptos passa por enjaulá-los junto dos que defendem as mesmas cores, proibi-los de usar camisolas ou cachecóis dos seus clubes em zonas que não lhes pertencem e não só estimular como até validar comportamentos idiotas como os de se forçar um pai a levar um filho à bola em tronco nu, porque há uns atrasados mentais que marram com a camisola que o miúdo possa querer usar. Sei que isso é cada vez mais difícil num mundo que está polarizado, mas formar adeptos passa por integrar em vez de separar, por conduzi-los a aceitar o diferente e então, aí sim, por afastar os que não são capazes de o fazer. O caminho é o oposto ao da atual guetização, que só nos leva a um destino – o do ódio e medo ao diferente. Não queremos isso para o futebol. Já nos basta o caminho que leva a sociedade.
Com muita pena minha e a confiar nalguns amigos que assistiram ao jogo, tenho de dizer que acho lamentável o que se passou e que os prevaricadores sejam punidos exemplarmente, o que não entendo é como é que o jogo prosseguiu.
Em que Mundo vivem as instituições para negar o direito à legitima defesa e esperar que um atleta, por ser atleta, deve deixar que o "matem" porque defender-se é que é grave.
Eu pergunto até que ponto muitas desses disparates que são falados e bem, neste texto, não são obra de uma PSP com poder a mais, do que da Liga ou do Governo, à excepção do poder a mais que a PSP tem na gestão da segurança, não só no futebol, que o Governo permite. Agora isto cai em saco roto e ficamos à espera da descida de divisão do Chaves e manutenção do Estoril, porque para o Chaves vai mais uma multa e um castigo de jogos à porta fechada suspenso ad aeternum pelo TAD.