A Liga sem hidratos
As discussões de arbitragem estão para o futebol como os bolos cheios de açúcar. Parecem bem, provavelmente sabem bem, mas fazem mal e é improvável que do seu uso não saia alguma culpa.

Palavras: 1398. Tempo de leitura: 7 minutos (áudio no meu Telegram).
O meu servidor de Discord, ao qual acedem todos os subscritores Premium deste Substack que entendam fazê-lo, tem uma sala de conversação exclusivamente dedicada às arbitragens. Aceitei criá-la porque aquela é uma comunidade dinâmica. Não somos assim tantos, falamos uns com os outros, até já nos encontrámos em almoços-convívio e uns de nós achavam que precisavam daquele espaço para carpir mágoas, enquanto outros queriam sobretudo que as conversas que mais lhes interessavam deixassem de ser contaminadas pelas queixas de quem não ganha acerca dos penaltis, dos foras-de-jogo e das expulsões. Estou neste último grupo mas, com um campeonato tão apertado como este, com duas equipas com os mesmos pontos a cinco jogos do fim, verifico que as arbitragens se tornam um tópico cada vez mais popular nas discussões, até noutras salas. E pela mesma razão que vos garanto que aquela é uma das salas do meu servidor em que não entro vos digo que esse debate tem problemas insanáveis. Cito a sabedoria de Eriksson, quando este dizia que, erro para cá, erro para lá, uns a somar e outros a diminuir, no fim a conta dará sempre zero. No tempo do sueco se calhar nem era bem assim, mas à medida que à temática se somam novas ferramentas – as TVs, primeiro, o VAR, depois – isso vai sendo cada vez mais evidente.
É claro que o tema é tendência. Abro qualquer rede social, sobretudo o Twitter, e não se fala de outra coisa. Imagino que os programas de televisão dedicados a “futebol” – com aspas – que vamos tendo também não falem de outra coisa, tudo com uns gritos e um par de insultos implícitos para viralizar melhor. O segredo dos grandes oradores sempre foi mais saber ler o público, perceber o que ele quer ouvir, do que ter algo de útil para lhe dizer e, pela mesma ordem de ideias, entendo que o caminho mais curto e eficaz para o sucesso mediático passe por alimentar a discussão acerca daquele que é o tema do momento. Uns clubes emitem comunicados, outros já abordaram a temática em entrevistas e acredito que haja na atuação de todos um misto de motivações, que vão do clamor por justiça à vontade de condicionar o que aí vem e à necessidade de agradar ao seu público, mostrando que se está atento. Quantas vezes já vimos adeptos queixarem-se de presidentes que são uns ‘bananas’, que não dão um “murro na mesa” quando as suas cores estão a ser alegadamente prejudicadas mas depois gozam com o rival que o faz nessas mesmas circunstâncias? É pena que não possamos chutar esta conversa para uma sala recôndita de um mega-servidor de Discord chamado realidade e nem sequer lá irmos ver o que está a ser dito e escrito. Como é pena que nesse âmbito não caiam também os esforços feitos pelos jornais para irem de encontro à vontade do público menos racional na tentativa de contabilizarem prejuízos e benefícios e de os transformar em pontos indevidamente conquistados ou perdidos.
Já expliquei várias vezes por que razão as minhas crónicas analíticas não incluem as análises à atuação dos árbitros. Dizem-me sempre: “Mas a arbitragem faz parte do jogo”. Sem dúvida. Acontece que, primeiro, há quem tenha muito mais competência do que eu para o fazer – os inúmeros ex-árbitros e, sobretudo, aqueles em que mais acredito, por lhes reconhecer uma atuação mais equilibrada e atualizada que, sem desprimor para os outros, são hoje o Duarte Gomes, o Jorge Faustino e o Pedro Henriques. Curiosamente, no meio de tanta duplicidade nas análises, de analistas que tantas vezes divergem, os três estão quase sempre de acordo nos lances que analisam. Depois e sobretudo porque se abro essa Caixa de Pandora já sei que quem me lê não vai querer discutir mais nada, porque a arbitragem é uma adição como o açúcar. E as análises que escrevo estão numa dieta de futebol sem hidratos de carbono. Isto não quer dizer que eu não tenha opinião sobre os lances, que a não dê se ma pedem na TV, por exemplo, mas só que entendo que a análise tática, técnica e estratégica de um jogo não é o fórum correto para a expressar, que não devo ali misturar alhos com bugalhos, sob pena de o produto final ser uma intragável salada russa.
Já vos contei também várias vezes por que razão não reconheço autoridade a secções como a autopropalada Liga da Verdade, que é feita pelo Record. Não ponho em causa a honestidade do exercício, isto é, não desconfio dos analistas nem vejo nos promotores o mais pequeno pingo de viés, mas é inconcebível para mim que de um simples erro de um árbitro resulte uma mudança da contagem de pontos. Dou sempre o exemplo que se segue. Imaginemos que uma equipa marca um golo irregular aos 5’ de jogo, que esse golo acaba por ser validado por erro do árbitro e do VAR e que o jogo acaba assim, no 1-0. É legítimo supor que, tivesse esse golo sido invalidado, como deveria ser, o jogo acabaria no 0-0? Com 85 minutos pela frente e com uma equipa a sentir que não precisa de forçar para marcar um golo que na verdade já tinha conseguido? O que faria essa equipa se o golo tivesse sido anulado? E como se comportaria a outra equipa nas mesmas condições? O jogo seria o mesmo se estivesse 0-0? É claro que não. Tudo mudou naquele momento e exercer o contrafactual é mais do que impossível. É surreal. Porque é feito, então? Voltamos ao segredo dos grandes oradores... É feito porque é isso que as pessoas querem ler, porque os potenciais leitores procuram ali uma espécie de validação externa para a sua ideia, nem que seja para a desfazerem em crítica se ela não diz aquilo que eles querer ler.
Lembrei-me de Eriksson, cuja frase, aquela do resultado zero, nunca vi impressa, mas me era repetida vezes sem conta em início de carreira por um dos meus mestres e que portanto creio seja verdadeira. Mas lembrei-me de Eriksson quando vi, hoje, que no meio de tanto barulho, a Liga da Verdade dá uma diferença de dois meros pontos entre Benfica e Sporting, suprimidos os erros de acordo com aquela teoria de que nada mudaria na predisposição tática das várias equipas se as decisões fossem invertidas. E quando vi que A Bola publicou hoje duas páginas carregadas de texto, assim, à antiga, como se as pessoas ainda quisessem ler em vez de lhes ser servida já a conclusão em cinco linhas impactantes para agitarem no Twitter, páginas essas onde é revisto o histórico de todas as decisões julgadas erradas pelos analistas do jornal e se conclui que tanto Sporting como Benfica já foram beneficiados e prejudicados nas 29 jornadas que leva o campeonato, tendo ambos neste momento um saldo pelo menos aproximado dos benefícios aos prejuízos. Manter essa ideia da soma zero em perspetiva é útil se, como eu, acreditarem que, como as outras classes profissionais, os árbitros são na esmagadora maioria honestos. Pode haver desvios? Pode, é claro. Todas as classes têm gente menos escrupulosa, gente que de repente pode ter caído num abismo do qual é difícil sair. Daí a importância de haver escrutínio, transparência na nomeação e na avaliação e de melhorarmos as ferramentas de auxílio à decisão, como o VAR, que uns nunca quiseram e outros fazem agora campanha para abolir.
No final, os árbitros vão cometer erros. Como os jogadores os cometem. Como os treinadores os cometem. Devem ser responsabilizados pelos erros? Claro que sim. O problema aqui é que nos deixemos embrenhar em narrativas segundo as quais erram de propósito contra as nossas cores, narrativas essas que na verdade só servem o interesse de quem quer mascarar a realidade com a incompetência alheia. Porque essa conversa, como os bolos carregados de açucar, é e será sempre mais popular do que a análise ao jogo. E não nos faz tão bem, logo à partida porque nos privará de vivermos como deve ser aquela que promete ser uma das mais entusiasmantes discussões de um campeonato dos últimos anos.
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