A ideia matou as soluções
Portugal perdeu os primeiros pontos desta Liga das Nações, empatando na Escócia, num jogo em que mostrou falta de soluções atacantes por responsabilidade de uma má ideia organizativa. Mudar para quê?
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O Escócia-Portugal de ontem acabou como tinham acabado os últimos dois Escócia-Portugal de competição: empatado a zero. E mais do que aquilo que se viu no campo, a forma como Ronaldo saiu a esbracejar, danado, porque o árbitro não quis deixar que a seleção nacional marcasse um último pontapé de canto, ao quinto minuto de compensação, foi um reflexo da evolução destas duas seleções ao longo dos anos. O empate de 1980, ainda por cima em partida disputada meses depois de termos encaixado quatro golos neste mesmo relvado de Hampden Park, foi visto como uma proeza. O de 1992 como algo promissor, ainda que não brilhante. Afinal, essa Escócia tinha sido uma das oito finalistas do Europeu jogado na Suécia. Mas o de ontem já é encarado como uma noite escura no caminho de uma equipa que se perdeu um pouco nas alterações estratégicas feitas por Roberto Martínez. O selecionador mudou para enfrentar um adversário que ainda não tinha pontuado nesta Liga das Nações, mas que já na primeira volta tinha sido o que mais problemas causara à seleção. Aliás, problemas nem é a expressão mais certa. Dificuldades, talvez.
Da Escócia de hoje já se sabe que é uma sombra da equipa de Gemmil e Dalglish e até da de McAllister e McCoist. Atrapalha, colocando duas linhas muito fechadas perto da sua área. E se tiver espaço em campo aberto é capaz de lançar um velocista lá ao outro lado do campo, a ver se apanha alguma coisa na rede. Tal como se tiver uma bola parada aproveita a capacidade de cruzamento de Robertson e faz subir gente alta e forte para disputar o lance no ar. Mas isto não são problemas. E se acabaram por ser dificuldades foi porque, como disse Bernardo Silva no final do jogo, em interessante assomo de lucidez, a equipa portuguesa não fez as coisas como devia e jogou sempre com “pouca cabeça”. Portugal controlou o jogo, fez 715 passes, teve nove cantos, 14 remates, mas raramente encontrou a forma de ligar jogo por dentro, de abrir brechas na organização adversária, acabando quase sempre por ir no engodo que os escoceses lhe deixavam, que era o de libertarem as laterais para os cruzamentos. Foram 39 cruzamentos ontem, ainda assim menos um do que na partida contra esta mesma Escócia na Luz, claramente a pior exibição que Portugal tinha feito até aqui na prova. Contra a Polónia tinham sido 15. E na receção à Croácia 13.
Parece haver aqui uma tendência, ainda que Roberto Martínez a tenha recusado durante a conferência de imprensa. “Se cruzámos muito foi sinal de que chegámos ao último terço”, respondeu-me quando lhe perguntei se não tinha sido um abuso, sobretudo tendo em conta que só cinco dos 39 cruzamentos de Glasgow chegaram ao destino. A verdade é que esse abuso de uma solução que convinha muito mais à Escócia, permitindo inclusive que o defesa-central John Souttar fosse designado melhor em campo, acabou por ser penalizador para Portugal, sempre pouco paciente na busca das ligações interiores que permitissem deixar os atacantes em situação favorável dentro da área. E porque é que isso aconteceu? Porque além de ter feito seis alterações ao onze que tinha ganho na Polónia, Martínez mudou ainda os posicionamentos e as missões, sacrificando a capacidade associativa da equipa. Desta vez, os três de trás em início de organização ofensiva foram os dois centrais, António Silva à direita e Rúben Dias pelo outro lado, com João Palhinha entre eles. Faltou nesse momento o pé esquerdo de Nuno Mendes, que estava projetado na linha lateral desde o início – e estando mais à frente privava a equipa também da sua ligação com o extremo, que ontem era Jota e surgia mais dentro do que o tinha feito Leão em Varsóvia.
Sobretudo, porém, faltaram opções de passe imediatamente à frente destes três homens que se responsabilizavam pelo início de organização atacante. Se em Varsóvia ali apareciam dois homens, Rúben Neves e Bernardo Silva, desta vez Vitinha viu-se sempre demasiado sozinho, inevitavelmente escondido atrás dos escoceses que compunham a primeira linha de pressão (Adams e McTominay) e sem ninguém com quem pudesse “conversar”. Ficou sempre a dúvida acerca de quem devia aproximar-se e associar-se a Vitinha no habitual 3x2x5 ofensivo de Portugal, se Bruno Fernandes – pois Jota cumpria a missão de aproximação a Ronaldo que ele desempenhara em Varsóvia – se João Cancelo – pois a largura à direita era assegurada por Conceição. O que se viu, porém, foi que, neste “vais-tu-vou-eu”, muitas vezes não ia um nem o outro e a equipa mastigava mais a saída, dessa forma chegando com menos qualidade ao último terço. Isso e a demora que permitia quase sempre a plena reorganização defensiva à Escócia acabava depois por tornar quase sempre inúteis todas as tentativas de rodar jogo por trás, ora à direita, ora à esquerda, na expectativa de que a necessidade de basculação viesse a desequilibrar o bloco escocês. Portugal passou boa parte do desafio com os seus três de trás a meio do meio-campo escocês, levando o jogo para uns 30, 35 metros onde faltavam espaços tanto por dentro como na profundidade. As coisas depois melhoraram, por volta da hora de jogo, quando Martínez passou a usar dois médios de ligação – Rúben Neves e Vitinha – e, retirando Palhinha da equação, a equipa passou a sair com Nuno Mendes atrás, colocando Leão na largura pela esquerda. Mas aí não só já se tinha perdido uma hora como muitos dos que estavam em campo se apresentavam já fatigados e pouco lúcidos quando chegava a altura de tomar decisões. E o zero não deixou o marcador.
Portugal vai na mesma qualificar-se para os quartos-de-final da Liga das Nações, certamente em primeiro lugar. Mas não deixa de ter empatado um jogo que era claramente de ganhar – e se o tivesse ganho não só estaria já apurado como até podia dar-se ao luxo de perder contra a Croácia que seria primeiro na mesma. Nos dez jogos imediatamente antes deste, a Escócia só tinha ganho a Gibraltar e empatado com a Suíça e a Finlândia, tendo perdido os outros sete. Esta não é a Escócia de Dalglish e Gemmil nem sequer a de McAllister e McCoist. É uma Escócia com pouca capacidade em ataque organizado e que só consegue atrapalhar quem quer jogar, somando a essa virtude alguma habilidade nas bolas paradas e nos contra-ataques. E se Portugal não lhe ganhou foi mesmo porque mudou demais. Não os nomes, que os que jogaram chegariam perfeitamente para ganhar. O problema foi que se mudou a ideia-base. E mudou-se para pior.
Martinez é demasiado confuso como treinador e selecionador e muda demasiado a equipa, muitas vezes com escolhas que não fazem sentido algum por muito que se tente entender as suas ideias. Para alguém tão conservador nas escolhas, que fecha a equipa num plantel onde ninguém entra e ninguém sai, não deixa de ser curioso.
Martinez só tem uma ideia constante e claramente não resulta. O 3-2-5, que torna o ataque demasiado largo e com demasiada gente e que sinceramente não me agrada nada e o absurdo do lateral que é médio.
Não desfaltou paciência ontem. Antes para o contrário, vi lentidão a mais e ritmo e entrosamento a menos de jogadores que o selecionador gosta de deixar de lado.