A gala dos cansados
Mané e Salah farão, na final da Champions, o 65º jogo da época. Díaz vai para 66. Mais de metade dos titulares de Liverpool FC e Real Madrid estão acima dos 55. E isso é um problema.
A campanha de má memória do Mundial 2014 trouxe para o léxico dos adeptos de futebol portugueses o “índice de risco lesional”, expressão repetida à exaustão por Henrique Jones, à data o chefe do departamento médico e de performance da seleção nacional. Na altura, a coisa levantava algumas sobrancelhas e motivava alguns sorrisos irónicos, mas hoje, oito anos passados, é em torno de índices como esse que se jogam sobretudo os finais de época e que tanto Carlo Ancelotti como Jürgen Klopp vão viver a final da Liga dos Campeões de amanhã, em Paris. O Liverpool FC revelou há dias que já faz uso de um algoritmo construído em Silicon Valley para decidir quem pode e quem não pode jogar a cada desafio e, não tendo os mesmos meios à sua disposição em todos os planos, a FIFPro, a união internacional dos sindicatos de jogadores, está a usar este jogo para expor ao Mundo a loucura que é a vida de um jogador de alto nível.
O Daily Telegraph fez as contas e concluiu na edição de hoje que, juntando os voos feitos pelos dois, Mané e Salah já somam mais de 112 mil milhas – 180 mil quilómetros – no ar esta temporada, o que é mais de metade da distância que vai da Terra à Lua. Entre as suas seleções, pelas quais nesta época jogaram a qualificação para o Mundial e o Taça da África das Nações, tanto o egípcio como o senegalês fizeram já 64 jogos em 2021/22. E muitas vezes foram poupados por Klopp, por recomendação do tal algoritmo construído pela Zone7, que leva em conta a informação fornecida pelos GPS usados pelos jogadores nos treinos, bem como dados biométricos, a força, a qualidade de sono, a flexibilidade e os níveis de stress de cada um. Tudo isso é monitorizado pela plataforma que, diz o Liverpool FC, reduziu em um terço os dias em que perdeu jogadores por lesão em 2021/22. Não se trata de fazer rotatividade ou de poupar jogadores com base em fezadas, mas sim de perceber por vontade própria até onde se pode explorar o talento.
Esta resposta altamente tecnológica, que transporta o futebol cada vez mais para o reino dos “big data”, vem ajudar a atenuar um problema que está aí há alguns anos e que se apresenta mais premente a cada época competitiva que atravessamos. A FIFPro agarra-se a estudos que foram feitos por uma série de treinadores de alta performance, que identificam uma zona de risco se um jogador tiver de fazer mais de 55 jogos numa época. Entre as opções à disposição de Ancelotti e Klopp para a final de amanhã já estão nessas condições Díaz (65 jogos), Salah, Mané (64), Alisson, Henderson (60), Jota (59), Van Dijk, Vinicius Júnior (58), Courtois (57), Militão (56), Fede Valverde e Fabinho (55). São doze, mais de metade dos que poderão começar o jogo do ano como titulares. E, terminada a final de Paris, muitos deles ainda terão a Liga das Nações pela frente, num fim de época que pode tornar-se penoso e, diz a FIFPro, ainda suportada nesses estudos, arriscado para a saúde dos jogadores – foi identificada uma zona crítica, sempre que os jogadores têm de fazer dois jogos com pelo menos 45 minutos em campo dentro de um período de cinco dias, o que é o quotidiano dos futebolistas de alta competição.
Que temos jogos a mais, parece uma evidência para a qual não são precisos “big data”. Basta estar minimamente atento. A questão aqui é outra: o que fazemos acerca disso? As teorias que dizem que os jogadores ganham bem precisamente para isso, para sacrificarem a saúde em resposta às necessidades da indústria, são questionáveis no plano dos princípios, mas até no plano da exploração dos “meios de produção”, como se percebe pelo recurso ao algoritmo por parte do Liverpool FC: uma indústria que explora até ao tutano as suas galinhas dos ovos de ouro, deixando-as sempre à beira do colapso, não é uma indústria bem gerida, quer se advogue o comunismo ou o capitalismo selvagem. Porque, até deixando de lado a defesa dos direitos dos trabalhadores se perceberá que o talento de um futebolista não se substitui com a mesma facilidade que uma peça desgastada numa máquina que produz sem parar para alimentar uma linha de montagem.
Os jogadores, aqui, são uma parte a ter em conta, mas também eles poderão fazer pouco ou nada enquanto os seus empregadores andarem feitos baratas-tontas a responder a tudo e a todos. Têm de jogar a Liga dos Campeões e a Liga das Nações para satisfazer a UEFA, as fases de qualificação dos Mundiais para dar uma abébia à FIFA, os campeonatos nacionais – que nos casos das Big Five garantem tanta ou mais receita televisiva do que a Champions – para se manterem em alta com os adeptos locais e os seus empregadores... A FIFPro fez durante esta época um inquérito aos seus associados, que se revelaram maioritariamente favoráveis a paragens individuais forçadas pelos regulamentos das competições sempre que alguém entra na zona crítica, nos tais dois jogos a cada cinco dias. Modric, por exemplo, fez esta época 24 jogos seguidos dentro desta zona crítica, o que é um risco idiota até para quem lhe explora o talento.
A questão é que enquanto o futebol viver neste limbo, com a FIFA, a UEFA e os grandes clubes a lutarem, cada um por seu lado, para perceber quem vai controlar a distribuição da receita – e guardar para si um bom quinhão – não é possível fazer a gestão desta exploração de uma forma racional. Enquanto vivermos assim, a coisa não se resolverá e aquilo que teremos serão mais e mais jogos, mais e mais exigência, mais e mais compromissos nos quais será fundamental estar na máxima força, sem poupanças. Só no momento em que esta guerra tiver um vencedor – seja ele quem for – é que poderemos ter um desfecho positivo que nos suprima a tentação de olhar para a gala que será a final da Liga dos Campeões na perspetiva de perceber quem é que está menos cansado.
Caro Tadeia, se há competições a mais é porque há competições a mais; se há a menos, a culpa é das preguiçosas FIFA e UEFA. A gala não é dos cansados. Afinal, como costuma dizer, o jogo é o que ele próprio dá. Já sabe que não gosto de treinadores de gravata. Dão-me sempre a ideia de que, para além de paxás, têm toda a sorte do mundo. Claro, escrever depois do jogo é fácil, mas lembrei-me das velhas polémicas Mourinho e Ancelotti e das palavras, em 2009 (auge da "guerra" Inter-Milan no campeonato italiano), do primeiro: "Um treinador pode perder muita coisa, pode perder muitos jogos, mas não pode perder a sua dignidade profissional". Afinal, a História veio dar razão a quem?
O futebol cada vez mais e um negócio , tal como o António tem vindo a escrever em diversos artigos . No entanto , senão zelarmos pelos principais intervenientes(jogadores) , podemos comprometer o negócio . Claro que todos os adeptos querem ver sempre os melhores … mas depois da enorme quantidade de jogos e viagens que os jogadores não vão continuar a responder da mesma forma e quem sofre é o espetáculo ! Deixo aqui uma questão … será que com esta continuidade de jogos e esforço mental não estamos a comprometer o espetáculo e em consequência o negócio ? 🤔