A estabilidade e o tempo de uma ideia
Qual é o tempo exato de uma ideia? Quanto demora a ser eficaz e por quanto tempo pode ser usada sem se reinventar? Eis um par de questões fundamentais para entender os 4-0 do Barça em Madrid.
Palavras: 1177. Tempo de leitura: 6 minutos (áudio no meu Telegram).
Mais do que a bondade de uma ideia ou a coragem de a executar, a claríssima vitória (4-0) do FC Barcelona sobre o Real Madrid, no Santiago Bernabéu, no sábado, deixou-me a pensar no tempo que leva pô-la em prática e no tempo que ela pode resistir dentro do prazo de validade sem um abanão que a revigore. Porque foi estupidamente rápido a Hansi Flick colocar a jovem equipa do Barça a jogar como ele queria – e conta a imprensa espanhola que, logo à chegada, o alemão pôs o foco do plantel no arranque de temporada, para explorar o tempo que iria demorar o Real Madrid a integrar Mbappé no seu futebol. E porque, por mais que ele responda sempre à altura em cada ocasião de que dele se duvida seriamente, Carlo Ancelotti parece neste momento afetado pela forma como a estabilidade pode ter trazido o Real Madrid para um período de águas demasiado paradas. Tão paradas que sofre para nelas integrar um tubarão como o atacante francês.
A ouvir os programas de rádio que se seguiram ao clássico de sábado, lá como cá demasiado centrados na capital, nas glórias e tristezas do clube mais representativo, pareceria que tudo o que estava em causa eram as razões pelas quais o Real Madrid não funciona como deveria. Como é possível meter Mbappé numa equipa que já tinha aquele que a maioria das notícias garante que será hoje consagrado como vencedor da Bola de Ouro de 2023/24, que é Vinicius Júnior, os dois liderados pelo treinador que também se diz que vai ganhar o prémio de melhor treinador do ano, que é Ancelotti, e o campeão espanhol e europeu acabar a sofrer? Como é possível que Mbappé tenha desperdiçado dois mano-a-mano com o guarda-redes Iñaki Peña, segunda escolha depois da lesão de Ter Stegen? E, pior, que tenha caído oito vezes em fora-de-jogo? A resposta estava no campo contrário, na capacidade que Hansi Flick teve, primeiro, de impor uma ideia – neste caso a da pressão subida e da linha defensiva invulgarmente alta – e, depois, na coragem de a manter, mesmo quando pela frente ia ter, numa semana, ogres como são o Bayern Munique e o Real Madrid.
E a questão que se coloca, depois, é a de perceber quando é que o muito se torna demasiado. Quando é que a coerência e a estabilidade se transformam em imobilismo. Se quisermos fazer uma comparação com a realidade portuguesa – e com outro treinador alemão – quando é que o futebol de Roger Schmidt, que nunca mudou, deixou de ser o rolo compressor que deu ao Benfica a Liga de 2023 e se transformou na máquina engasgada que levou à sua destituição em 2024. Na construção deste FC Barcelona há dois aspetos a ter em conta. O primeiro, fundamental, é que se partiu da ideia para o campo. Flick chegou e definiu: quero jogar assim! Com bola, estabelecimento de um ponto fulcral no meio do campo, onde é importante haver cérebro que alterne segurança e estabilidade na posse com capacidade de meter passes de rotura que explorem as diagonais dos extremos. Sem bola, pressão muito subida, a apertar o adversário de forma coordenada logo desde o primeiro momento, e linha defensiva bastante alta, a reduzir o espaço entre setores e a explorar a armadilha do fora-de-jogo. O segundo é a confiança. Porque quando sabes que vais ter à tua frente o avançado mais rápido do Mundo, que provavelmente será Mbappé, jogador que até podia dar-se ao luxo de dar um par de metros de avanço aos defesas e ainda assim chegar primeiro a bolas metidas na profundidade, seria legítimo que pensasses duas vezes antes de te agarrares à tua ideia. Mas Flick manteve-se coerente.
Muito do que é este Barça tem que ver com a confiança que o treinador meteu em cima dos seus jovens jogadores. Perdeu Ter Stegen e o presidente Joan Laporta deu-lhe Szczesny, que foi resgatar à reforma, mas ele prosseguiu com Iñaki Peña, que no papel devia ser suplente e que ainda no sábado respondeu com duas defesas decisivas quando o resultado ainda estava em aberto. Junta a meio-campo Marc Casadó, Fermín López e Pedri González, todos de 21 anos, e pode ainda crescer com o regresso de Pablo Gavi, de 20. Fá-lo sabendo que são todos saídos do mesmo molde, o dos médios que fazem a intensidade nascer da capacidade para descobrir sempre o melhor passe. Não é verdade que o meio-campo do Barça não tenha intensidade. Como o não é que a intensidade tenha de ser um atributo exclusivamente físico. Ou que para ter sucesso baste ter a habilidade para tirar a bola das zonas de pressão e fazê-la girar incessantemente pelo relvado, que é o esterótipo contrário. Não. O que o meio-campo deste Barça mostra é que há muita intensidade na inteligência, na capacidade para ir além dos lugares-comuns do médio pequenino e técnico ou do médio grande e físico. E só assim se entende que o Real Madrid, por exemplo, tenha sofrido tanto com a perda de Toni Kroos, um médio que não era pequenino, mas era técnico – no passe, então, não teremos visto ninguém melhor do que ele nos últimos anos, porque ele entendia que não bastava fazer girar a bola, era preciso fazê-la chegar aos sítios certos – e era muito intenso.
Só o futuro nos dirá se esta coerência, esta consistência de ideias, que o Barça exibe se tornará ou não em monotonia. No futebol não há receitas eternas, receitas que superem a prova dos tempos e os antídotos que sempre foram e continuarão a ser criados. Flick sabe disso – já foi posto a andar em Munique ou da seleção alemã, por exemplo – e por isso mesmo teve o cuidado de impor aos jogadores a necessidade de um arranque fortíssimo, a gerar o balanço, a embalagem de que a equipa precisa para chegar à Primavera em condições de alimentar o sonho de discutir títulos. Porque me parece um erro enterrar já este Real Madrid. Da última vez que o Barça foi ganhar por 4-0 ao Santiago Bernabéu, em Março de 2022, é verdade que conseguindo apenas reduzir para 12 pontos a desvantagem face ao rival na Liga, os merengues acabaram como campeões de Espanha e da Europa um par de meses mais tarde. A coerência, Ancelotti usa-a de forma diferente e não passa tanto pela repetição de uma ideia futebolística mas sim pela sabedoria de reconhecer que não há erro possível em somar bons jogadores. Que o tempo, neste caso, joga a favor dele, como se tivesse metido o seu futebol num tetrapak que lhe permita resistir à degradação que ataca todas as boas ideias. É esse o segredo do Real Madrid.
O melhor Barcelona de sempre, ou provavelmente de sempre, o de Iniesta, Xavi e Messi, já tinha uma forte componente da juventude e da formação, sem precisar dos holofotes das grandes transferências que alimento o imenso ego do Real Madrid, que o leva, por exemplo, a fazer a tritíssima figura que fez ontem na Bola de Ouro. O Barcelona foi com o trabalho certo e usou bem a arrogância do clube de Madrid.