A concorrência e a cláusula de Carmo
Cláusulas como a incluída por FC Porto e SC Braga na transferência de David Carmo são utilizadas por todo o lado sem grandes polémicas. Mas em Portugal a realidade é excecional.
Em Maio, na semana que antecedeu a última jornada da Premier League, um espectador do Futebol de Verdade, o programa que faço no meu canal de YouTube e que regressa de férias já no dia 18, perguntou-me o que achava da possibilidade de o Aston Villa facilitar a vida ao Manchester City no jogo decisivo da corrida pelo título, porque teria muito dinheiro a ganhar se os “citizens” fossem campeões, devido a uma cláusula na transferência de Grealish. Disse-lhe que não sabia nada disso – e não sabia –, mas que à partida não acreditava que tal viesse a suceder. Estava longe de imaginar que, meses mais tarde, uma cláusula semelhante viesse incendiar os debates por cá, a propósito da transferência de David Carmo do SC Braga para o FC Porto. E a minha resposta é a mesma: não acredito que o SC Braga venha a facilitar a vida ao FC Porto em desafios futuros por causa dos 500 mil euros que receberá de acréscimo por cada campeonato ganho pelos dragões. Mas, ainda que ache que o problema não está nestas cláusulas e sim na mente de quem as interpreta de acordo com os seus próprios princípios éticos e morais, acho que devíamos legislar no sentido de impedir que venham a ser utilizadas entre equipas da mesma Liga.
Na altura da tal conversa no Futebol de Verdade fiquei intrigado acerca das razões pelas quais a polémica me tinha escapado. Vim depois a perceber duas coisas. A primeira é que não era só o negócio Grealish-Villa-City que estava em causa. Aquando da contratação de Grealish ao Aston Villa, o Manchester City concordara em pagar mais 15 milhões de libras – 17,5 milhões de euros – caso fosse campeão, algo que naquele momento já só dependia de uma vitória no último jogo da temporada, frente ao... Villa. Mas também o Liverpool FC – que precisava de uma escorregadela do City e de ganhar ao Wolverhampton WFC para ser primeiro – tinha na contratação de Diogo Jota aos... Wolves clausulado em que aceitava pagar mais caso viesse a ganhar a Premier League. A segunda coisa que percebi foi que isso em Inglaterra não chegou a ser um problema falado – nem chegou aos “proper papers”, razão pela qual me escapara, ajudando apenas a animar as edições dos tablóides –, também porque o Villa e os Wolves tinham muito mais em jogo nos prémios monetários que a Liga atribui por posicionamento na tabela final. E até aceito que me digam que andamos todos a ser enganados e que se não fosse pela informação tabloidizada ninguém dizia “as verdades”, mas não é esse o Mundo em que me movo, porque esse Mundo abre um círculo vicioso do qual depois dificilmente se consegue sair.
A questão aqui é que o clausulado inserido na contratação de David Carmo pelo FC Porto não foi fruto da imaginação malévola de uns quantos malvados interessados em subverter as regras da competição saudável. Não só os nossos clubes estão habituados a incluir cláusulas semelhantes em vendas que fazem para o estrangeiro – que normalmente são as únicas que atingem valores capazes de justificar tal coisa – como elas existem também nesse modelo de virtudes que é a Premier League. Tudo normal, portanto? Não. E é aí que a porca torce o rabo. É que para casos excecionais há que adotar medidas excecionais. Dou-vos um exemplo. Os ingleses tiveram um enorme problema de raiz económico e social, nos anos 70 do século passado, que descambou no hooliganismo futebolístico. Qualquer sociólogo com dois dedos de testa percebia que o problema era exterior ao futebol, mas isso não desobrigou o futebol de o atacar com medidas excecionais. Hoje, numa altura em que o futebol de Premier League é uma espécie de produto-caviar ao qual as massas trabalhadoras mais desfavorecidas nem sonham aceder (e isso também não me parece bom), o caso dos 15 milhões de euros de incentivos na transferência de Grealish não foi sequer tema também porque a Liga está de tal maneira credibilizada e garante um tal nível de receita que, se ganhasse o jogo ao City e subisse ao décimo lugar, o Villa garantiria 22 milhões de euros em “Prize Money”.
Muito por responsabilidade dos seus principais clubes – e vocês já nem devem poder ouvir-me dizer isto, tantas são as vezes que o repito –, a Liga Portuguesa entrou num círculo vicioso de descredibilização que pede medidas excecionais, muito além dos paninhos quentes que Pedro Proença utilizou para se referir ao alegado protesto do Benfica na cerimónia de Kick-Off. A maior batalha dos seus responsáveis deve ser a credibilização de uma competição que os principais intervenientes destroem a cada declaração que proferem ou mandam proferir. É por isso que não vejo mal na cláusula inserida por FC Porto e SC Braga na transferência de David Carmo mas acho que devíamos ver se há maneira de impedir legalmente que cláusulas como esta sejam utilizadas. Porque, já o disse, para casos excecionais exigem-se medidas excecionais.
Ontem, pode ter-lhe escapado:
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