A busca pela clarificação
No início da época, o problema do FC Porto era de qualidade. Com os reforços de fecho de mercado passou a ser de clarificação. O que Vítor Bruno tem de entender é a que é que joga a sua equipa.
Palavras: 1247. Tempo de leitura: 6 minutos (áudio no meu Telegram).
São quatro jogos seguidos sem ganhar e, ainda que o empate no terreno de um Anderlecht que estava e permaneceu invicto na Liga Europa não deva forçosamente ser visto como mau resultado nem deixe o FC Porto em cuidados na corrida à qualificação para o playoff, ele foi o suficiente para que nas bancadas voltássemos a ver contestação ao treinador, Vítor Bruno, e para que este se sentisse impelido a afirmar que nunca será o problema, isto é, que no dia em que entenderem que ele está a mais não colocará entraves ao afastamento. Parece-me cedo para medidas tão radicais, mas a cada jogo que passa a equipa do FC Porto desperdiça mais uma oportunidade para vincar uma identidade que tem de ser aposta firme e não solução de recurso. A perda de situações de vantagem nas últimas duas partidas – em Bruxelas, por duas vezes – veio enfatizar a variável experiência e lembrar o desperdício do patrão que talvez ainda pudesse ser Pepe, mas o problema no jogo do FC Porto é mais profundo do que isso e parece prender-se com a falta de uma base sólida e clara. A que joga este FC Porto? Esta é uma pergunta à qual ninguém saberá responder com propriedade. Se calhar nem o próprio Vítor Bruno, tão empenhado ele tem estado na variabilidade estratégica com que tem procurado dotar a equipa a cada semana que passa.
No fundo é como se este FC Porto quisesse andar de bicicleta sem mãos antes de aprender a equilibrar-se bem agarrado ao guiador. Não sou capaz de dizer que Vítor Bruno não sabe de futebol, porque as opções que ele assume e o discurso com que as explica me têm parecido sempre bem consolidados. Não sou capaz de dizer que ele não tem o balneário na mão, que não é isso que mostram as interações e a linguagem corporal no contacto com os jogadores na linha lateral, sempre a tresandar a proximidade. O problema é que também não sou capaz de dizer a que joga esta equipa. A de Sérgio Conceição, todos o sabíamos: por muito que o seu responsável odiasse que assim a definíssemos, era uma equipa de pressão e transição, uma equipa de arreganho e luta. A recusa desta identidade demarcada, feita pela direção de André Villas-Boas e da qual Vítor Bruno ou foi cúmplice ou ideólogo – isso só quem viveu tudo por dentro poderá esclarecer – partiu de uma base bem definida, montada em cima do jogo mais associativo de Namaso e Nico González na frente, do acrescento de extremos capazes de explorar a profundidade, que eram Galeno e Gonçalo Borges, e do sacrifício de um lateral em início de construção, no caso Martim, fosse à esquerda ou à direita. O problema é que a qualidade era reduzida. Mas não só ainda faltava acrescentar os internacionais (Pepê à frente de todos) como o mercado trouxe gente nova.
Vieram Neuhén Pérez e Tiago Djaló para poupar o FC Porto ao embaraço de ter de jogar com um central tardiamente promovido da equipa B, no caso Zé Pedro, permitindo até ao treinador repetir com Otávio a ostracização excessiva de uma opção cara que já se vira com David Carmo antes. Veio Francisco Moura para desempenhar o papel de lateral mais baixo em construção, abrindo o caminho a uma estafeta entre Martim e João Mário, capazes de alternar do outro lado no papel de lateral mais projetado. Estas foram adições no plano da qualidade que não tiveram implicações estratégicas no futebol da equipa. Mas vieram ainda Fábio Vieira e Samu, as duas contratações que mais elevaram o potencial do grupo, porque se trata de jogadores claramente diferenciados. E Samu, sendo bastante melhor ponta-de-lança do que Namaso, pede também outro futebol. Se contarmos apenas o período que o inglês passou como avançado de referência, ele intervém no jogo a cada dois minutos e 22 segundos, enquanto que o espanhol o faz a cada três minutos e cinco segundos. Não é muito diferente? É o suficiente para mais nove participações a cada 90 minutos de Namaso em comparação com Samu. Já se vê, portanto, que é fulcral para o FC Porto criar condições, um plano tático, que meta Samu em jogo com mais frequência – e não com menos, como sucede neste momento. E isso passará sempre pela definição de uma “sociedade” clara entre ele e quem mais perto dele joga. O seu compatriota e companheiro de seleção espanhola de sub21, Nico González? Não. Porque a introdução na equação de Pepê e Fábio Vieira, cuja afirmação tardou por causa de uma lesão, e no início ainda de Ivan Jaime, que agora anda desaparecido, implicaram que Nico baixasse no campo, deixando o FC Porto órfão da identidade que construiu durante a pré-época.
A questão não teria de ser problemática, que também a mim me parece que o médio espanhol pode ser mais importante partindo de trás e surgindo em zonas de definição para acrescentar a quem já lá está. Mas começa a sê-lo quando, primeiro, ele próprio tem vivido uma indefinição estratégica permanente e, depois, a variação de quem lhe surge à frente de jogo para jogo lhe dificulta o estabelecimento de rotinas. Nico González já foi de tudo neste FC Porto. Foi segundo avançado no arranque da Liga, baixando em apoio juntamente com o ponta-de-lança para atrair os centrais adversários e permitir que fossem os extremos a dar a profundidade. Passou depois, a meio do caminho, a ser segundo médio, ainda que com a responsabilidade de iniciar a construção a três, à esquerda dos centrais, de modo a ilibar Varela dessa tarefa e a projetar desde logo Moura, permitindo que Galeno surgisse mais por dentro. Foi ainda terceiro médio, sempre pela meia-esquerda, a par de um interior direito que era Eustáquio, mas continuando a baixar para presidir ao início de construção. E ontem, em Bruxelas, mantendo a posição, cedeu a missão de início de organização ofensiva a Alan Varela, quem sabe se numa tentativa de simplificar os processos. Porque se há coisa de que este FC Porto precisa neste momento já nem é tanto de qualidade, que há muito jogador bom ali em subaproveitamento – a começar no caso flagrante de Fábio Vieira, que tem de render mais do que tem mostrado. Aquilo de que o FC Porto precisa mais neste momento é de clareza, de jogar um futebol que os jogadores comprem, de lhes permitir o estabelecimento de rotinas e mecanismos que deles extraiam o melhor que cada um tem para dar.
O congestionamento dos calendários é inimigo de uma aposta mais permanente num mesmo onze, que nem todos os jogadores se aguentam com jogos de três em três dias, com dois jogos de elevada exigência competitiva por semana. Mas nem tudo o que é a indefinição que vive o FC Porto se prende com rotatividade entre titulares e suplentes. Boa parte do problema tem a ver com a mudança permanente de funções de muitos dos que jogam sempre. E nada, nem a vontade de surpreender a cada jogo no plano estratégico, pode suplantar a necessidade de encontrar a estabilidade e a segurança, a capacidade de jogar de cor, que fazem as melhores equipas.