A barreira dos 30 milhões
A opinião pública nacional começa a ser preparada para o passo seguinte na escalada do mercado. Este Verão chegará a Portugal o primeiro jogador de 30 milhões de euros. Qual é o racional da operação?
Lembro-me do efeito que tiveram em mim, no Verão de 1988, as notícias acerca da mudança de Tony Cottee do West Ham para o Everton, por 2,2 milhões de libras, pouco mais de 500 mil contos na moeda antiga. Eu tinha 18 anos e aspirações a jornalista e aquilo parecia-me uma fortuna inimaginável, sobretudo porque em Portugal mercado era coisa que ainda não havia. Um mês depois, Rush voltou da Juventus ao Liverpool FC, eclipsando aquele recorde, o que me fez relativizar as coisas e entender que o destino dos máximos é serem batidos – depois cabia aos jogadores suportarem melhor ou pior o rótulo de recordistas. Tello, por quem o Sporting deu, em 2000, 1,5 milhão de contos – 7,5 milhões de euros – foi o primeiro a quebrar a barreira milionária em Portugal e nunca viveu muito bem com isso. Um ano depois, o Benfica elevou a fasquia, investindo 2,4 milhões de contos – 12 milhões de euros – em Simão. Os 15 milhões já foram superados pelo FC Porto por Hulk, ainda que em duas vezes: 5,5 milhões por metade do passe em 2008, mais 13,5 milhões por outros 40 por cento três anos depois. E foi também no FC Porto que se chegou primeiro aos 20 milhões, imaginem, por Imbula, em 2015. São já muitos, hoje, os jogadores de 20 milhões de euros em Portugal: Imbula, Oliver Torres e David Carmo no FC Porto, este último a primeira transferência interna de 20 milhões, Raul de Tomás, Weigl, Everton e Jiménez no Benfica. Depois veio Darwin Nuñez e os negócios mais complexos: foram 24 milhões à cabeça numa operação que acabou por custar mais dez, em mais-valias a que o UD Almería teve direito na saída do jogador para o Liverpool FC. Tanto o uruguaio como Enzo Fernández – custo total de 44 milhões – acabaram já por superar a tal barreira dos 30 milhões, mas só porque foram vendidos com muito lucro em pouco tempo. O que este Verão nos trará, como já vos tinha antecipado numa edição do Futebol de Verdade, é o primeiro jogador de 30 milhões à cabeça. Hoje, é para esses números que o Record aponta na aquisição de 80 por cento do passe de Orkun Kökcü, o médio turco do Feyenoord em quem o Benfica pensa para o lugar de Enzo. Roger Schmidt deixou o recado no rescaldo da festa do título: ainda falta substituir o argentino. E o jogador que ele quer é o ex-parceiro de Aursnes em Roterdão. A permanente espiral inflacionista do mercado leva a que pareça razoável que o Benfica invista nele metade dos cerca de 60 milhões de euros que teve de lucro com o argentino que transferiu para o Chelsea em Janeiro. E ajuda a explicar a necessidade que os nossos clubes têm sempre de fazer mais-valias. Ainda há dias um dos espectadores do Futebol de Verdade questionava a necessidade que eu anunciara do Benfica vender pelo menos um jogador, pois tinha entrado muito dinheiro em Janeiro. A questão que se coloca aqui será a da especificidade das sociedades desportivas. O objetivo destas nunca é o lucro, mas sim o zerar das contas, aumentando de caminho a possibilidade de conquista de troféus que, a não ser em condições muito especiais, passará sempre pelo investimento. Sim, o Benfica tem sabido vender bem e caro. Sim, o Benfica tem um volume de receita superior ao dos seus rivais. Mas se eu sei disso, se vocês sabem disso, os jogadores também sabem – e por isso começa a ser mais caro renovar contratos, como está a ver-se, por exemplo, no caso de Rafa – e, sobretudo, o mercado está cansado de saber disso. Quem vende ao Benfica sabe que está a vender a um clube que depois vai revender caro, pelo que abre sempre mais a boca. E isto também leva a um aumento do risco por parte do investidor. São 30 milhões – e é bom que valha a pena.
A privatização da arbitragem. A Federação Portuguesa de Futebol já deu o pontapé de saída no que acabará por ser a inevitável privatização da arbitragem e isso só levará a que se torne ainda mais evidente o paradoxo que é o negócio do futebol em Portugal. Em termos ideais, a coisa funcionaria como em Inglaterra, cuja Professional Game Match Officers Limited é dada como exemplo. Isto é, para dificultar o jogo de influências, a Liga subcontrata o setor a uma empresa privada, à qual paga para gerir o setor. E gerir o setor implica tudo, nomeadamente fazer contratos com os árbitros, que passam a depender daquela empresa. O curioso vai ser quando a Liga – os clubes, portanto – passar a desviar uma parte ainda significativa do seu orçamento para pagar à empresa que gere a arbitragem e depois os clubes – a Liga, portanto – continuarem a gastar uma parte do seu orçamento em serviços de comunicação destinados a influenciar negativamente, pela criação de narrativas, a perceção pública da arbitragem. Mal comparado, é como eu ter uma empresa e destinar parte da minha receita a criar um serviço que espalha no público a ideia de que a minha empresa não presta. A arbitragem pode ser pública ou privada, nacional ou internacional, mas nunca vai funcionar enquanto o futebol não entender que o maior problema não são os árbitros. São os clubes.
O sucesso do SC Braga. Boa parte do sucesso do SC Braga nos últimos anos está diretamente assente numa intervenção avisada no mercado interno e na junção de mais dois fatores que não estão ao alcance dos grandes. Primeiro, tal como vos expliquei acima acerca do Benfica, ao SC Braga ainda ninguém pede o que pede aos grandes. Depois, os fracassos não são tão duramente escrutinados – não houve programas de televisão ou primeiras páginas de jornais a questionar investimentos como os feitos em Bruno Viana, Lucas Mineiro ou Mário González, por exemplo. Mas isso deixa-nos com a primeira parte da questão, que continua a ser válida. O sucesso do SC Braga depende da intervenção rápida e avisada no mercado interno, ainda agora à vista na contratação de Vítor Carvalho ao Gil Vicente. O médio brasileiro é um jogador seguro, que parece encaixar como uma luva caso António Salvador consiga os milhões que pede por Al Musrati ou até para fazer face à saída de Racic, cuja opção parece pouco inclinado a acionar. Depois, se dá certo ou não, só o futuro dirá. Para já, duas certezas ficam: não será caro e se falhar ninguém vai fazer muito barulho com isso.