A ambição e a constância
Sérgio Conceição e Paulo Sérgio, os dois treinadores há mais tempo à frente de equipas de I Liga, deixaram o FC Porto e o Portimonense no dia em que José Mourinho falou de ambição em Istambul.
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E, de repente, o treinador há mais tempo no cargo na Liga Portuguesa é... Rúben Amorim. No mesmo dia em que José Mourinho se alongava acerca do que é ambição e do que não gosta na ideia de anos sabáticos, que são coisa de fracos, de animais não competitivos, os técnicos que há mais tempo estavam à frente de uma equipa em Portugal, Sérgio Conceição e Paulo Sérgio, anunciaram a saída de FC Porto e Portimonense, deixando como dinossauros da área técnica dois homens que até há bem pouco tempo ainda tinham de recorrer ao estratagema de um adjunto devidamente encartado para poderem comandar as equipas no banco, ainda que sem o direito a levantar-se para gritar ordens aos jogadores: Rúben Amorim e Luís Freire. O que é a ambição, afinal de contas? Em que medida é que uma equipa beneficia da alteração do comando técnico? A permanência longa pode condicionar os objetivos de uma equipa pelo risco de acomodamento do líder?
Sou, regra geral, a favor da continuidade dos treinadores. Cada treinador, cada equipa técnica, transporta com ele horas e mais horas de trabalho tático, de exercícios no campo, de memória que os jogadores vão acumulando em situações de jogo, tornando mais fácil a ação e a reação a cada momento, permitindo corrigir aquilo que está mal com um simples franzir do sobrolho ou um esticar de um braço na linha lateral. Durante décadas, por cá, ouvíamos falar dos longos períodos de sucesso de treinadores em Inglaterra, dos 15 anos de Bill Shankly seguidos dos nove de Bob Paisley no Liverpool FC, nos 27 anos de Alex Ferguson no Manchester United, e lamentávamos a inconstância que atribuíamos à latinidade e que nos conduzia a chicotadas psicológicas permanentes, a não dar aos treinadores o tempo de que eles precisavam para os seus objetivos. Em condições ideais, há três razões para a mudança de treinador num clube. Ou o responsável não representa aquilo que o clube quer, seja no plano do futebol jogado, do comportamento ou dos resultados consolidados. Ou o treinador entende que atingiu o seu fim de ciclo, que já não tem energia para tirar mais daquele grupo ou daquela realidade. Ou, por fim – e esta é uma razão aparentada com a anterior –, o treinador tem ambição acima do que aquele clube pode proporcionar-lhe.
José Mourinho, ontem apresentado no Fenerbahçe, da Turquia, falou muito de “ambição”, seja porque é aquilo que sente na vontade de voltar sempre ao ativo, quando está rico muito para lá do ponto em que precise de trabalhar, seja porque quer iludir-se a ele mesmo na ideia de que continua a ser o Special One de há 20 anos, quando assinou pela primeira vez pelo Chelsea de Abramovich. “Não gosto de anos sabáticos, de férias, de trabalhar em clubes sem ambição. Ambição é sentir a pressão de ter de ganhar todos os jogos para seres campeão e essa é a realidade do Fenerbahçe”, disse Mourinho, ignorando propositadamente o facto de, em meia dúzia de anos, ter passado de treinador de um candidato a títulos na Premier League inglesa, a primeira Liga do ranking europeu, a técnico de uma equipa que luta por uma vaga europeia na Serie A italiana, a segunda Liga da tabela da UEFA, a um clube candidato a troféus – mas que já não os ganha há anos – na SuperLiga turca, a nona competição dessa mesma lista. No fundo, Mourinho bateu de frente com a lógica dos que achavam que Rúben Amorim, por exemplo, devia encarar a possibilidade de trocar a luta por títulos e a presença na Liga dos Campeões com o Sporting pelo meio da tabela na Premier League, caso tivesse corrido bem a conversa com o West Ham. E está tudo bem, porque cada cabeça pensa à sua maneira. “A minha casa é em Londres... mas ia para um clube inglês ficar em sétimo ou oitavo? Ia para Itália rezar pelo milagre de estar na Europa? Para Portugal para poder ver a minha mãe todos os dias?”, perguntou retoricamente José Mourinho à plateia de jornalistas que o receberam em Istambul.
A luta por títulos é uma espécie de adrenalina que desgasta uns e mantém outos ligados à corrente. Ainda ontem, em conversa informal, a preparar a série Reis da Europa, cuja edição relativa a 2024 arrancará aqui a 21 de Junho, o Ricardo Sá Pinto, treinador que foi campeão de Chipre com o APOEL, me dizia: “Sabes que ganhar é sempre difícil, seja onde for”. Há uns anos valentes, no início da década de 70, Jimmy Hagan, crónico campeão de Portugal com o Benfica, tentava banalizar a conquista de títulos: “Se as equipas da I Divisão forem treinadas por 16 mecânicos de automóveis, um mecânico de automóveis acabará por ser o treinador campeão”, dizia o Mister ‘No comments’. Isso é verdade, mas não deixa de ser igualmente verdadeiro que aquele que o conseguisse teria feito o seu trabalho melhor do que os outros. E que, se por um lado é para isso que muitos deles lá estão, por outro tem de se normalizar a possibilidade de não o conseguirem. Despedir um treinador porque não foi campeão, como a franja mais radical de adeptos do Benfica queria que Rui Costa fizesse com Roger Schmidt, é só idiota, confiando que o alemão continua a cumprir nos critérios que enunciei acima. Ainda representa aquilo que o clube quer, tanto no comportamento como no futebol praticado? É que os resultados foram menos bons este ano mas tinham sido ótimos na época passada... Ainda entende que consegue extrair do grupo o que ele tem para dar? Ainda sente energia e ambição de ganhar coisas no Benfica? Nesse caso só tem mesmo de continuar e ser parte da solução, ajudando a decifrar a quebra da equipa.
Foram diferentes os casos de Conceição e Paulo Sérgio. O primeiro não representa aquilo que o FC Porto quer, o novo paradigma, a narrativa que o FC Porto pretende mandar para o exterior – e não deixa de ser um excelente treinador por isso. O segundo cedeu ao desgaste de tantos anos a lutar contra a linha de água, contra as movimentações constantes de mercado, que o transformavam no único foco de estabilidade de um plantel que mudava demasiado, e já não sentia nele a energia para continuar a ser o polo aglutinador do projeto. Os dois vão dar lugar a um novo ciclo, com novos responsáveis, que trarão a energia das coisas novas, mesmo que isso implique ter de começar processos de novo também. Os campeões da longevidade da nossa I Liga passam assim a ser Luís Freire, no Rio Ave desde Julho de 2021, e Rúben Amorim, no Sporting desde Março de 2020. São eles que começam a ver as costas curvar naturalmente com o peso dos anos, com a rotina de olharem todos os dias para as mesmas caras, de lutarem sempre contra os mesmos problemas, mesmo que tenham sobre os seus jogadores uma influência difícil de atingir por um líder acabado de chegar. E mesmo que de vez em quando tenham de agitar as águas, como fez esta época Amorim. A viagem a Londres, para falar com o West Ham, antes de garantir a conquista do título, foi um erro – disso não há dúvidas. Mas a exigência de títulos para seguir à frente dos jogadores talvez o não tenha sido – e durante muito tempo achei que era. Talvez fosse disso, desse esticar da fasquia depois de um quarto lugar, que precisavam o treinador e os jogadores. No fundo, é disso que Mourinho fala quando fala em ambição.
O Sr Pinto da Costa, saiu por uma porta grande, a da garagem como todos samemos, e o seu treinador? terá saído por uma porta 🚪 tão grande mas tão grande que mais parecia uma porta giratória nesta semana.