A almofada de Rúben Amorim
O treinador do Sporting diz que o segundo apuramento seguido para a Champions lhe dá uma "almofada para pressionar" no sentido de manter as bases do grupo. É uma boa luta, mas não será uma luta fácil.
O segundo apuramento consecutivo do Sporting para a fase de grupos da Liga dos Campeões levou um bem-humorado Rúben Amorim a dizer, assim que a matemática lhe deu tréguas, que agora tinha “uma boa almofada para fazer pressão” sobre a direção, não só no sentido de garantir reforços, como sobretudo no de poder manter os jogadores que lhe garantiram dois campeonatos de excelente nível. Muita gente já se levantou, reclamando que os leões perderam o momento para vender em alta jogadores como Palhinha ou Pedro Gonçalves, que já terão valido mais no mercado, e esta é altura ideal para fazer um lembrete: o objetivo é ganhar jogos e não campeonatos de mercado. Porque o dinheiro vai tal como veio e as taças é que ficam nos museus e, sobretudo, nas memórias dos adeptos – e ainda não vi ninguém ir para o Marquês de Pombal celebrar uma transferência.
A gestão de um plantel num clube que é – como, no fundo, são quase todos os portugueses – deficitário e precisa de mais-valias com transferências para se equilibrar torna-se bastante difícil. Veja-se o caso do FC Porto. Repare-se na forma como Díaz saiu quase sem se despedir, porque faziam falta os milhões que o Liverpool FC ia dar por ele, a meio de um campeonato que depois disso podia ter corrido muito pior – e até ver os dragões continuam a ser amplos favoritos para o ganhar, só lhes faltando um ponto. Ou veja-se o caso do Benfica, que celebrou como vitórias vendas milionárias como as de João Félix ou Rúben Dias, mas vai fazer em Agosto três anos que não ergue um troféu – e o dinheiro, entretanto, já se gastou, muitas vezes em jogadores aos quais já não se sabe bem o que lhes fazer. E não é por incompetência de quem decide: é porque é mesmo assim que as coisas são. Ou olhe-se ainda para o SC Braga, que vai contando milhões a entrar na caixa registadora de António Salvador, por gente como Galeno, Esgaio, Fransérgio, Trincão, Paulinho ou o próprio Amorim, mas ao mesmo tempo vai adiando aquele que devia ser o seu objetivo primordial: equiparar-se aos grandes na luta por títulos.
Da mesma forma que já houve, no universo sportinguista, quem criticasse a gestão por não ter aproveitado a ocasião ideal para vender Palhinha e Pedro Gonçalves, também haverá no universo braguista quem critique António Salvador por ir desfazendo equipas sucessivamente – e a ver vamos o que acontecerá neste Verão com Ricardo Horta e, sobretudo, David Carmo. Como houve no FC Porto quem criticasse a venda de Díaz com o campeonato e a Liga Europa a meio – a começar pelo próprio Sérgio Conceição, que desde logo anunciou um recalibrar de objetivos. Como haverá até no Benfica quem não se deixe entorpecer pelos sete ou oito novos jogadores que chegam em cada defeso, com luzes a acender e a apagar nas primeiras páginas dos jornais e nos programas televisivos dedicados ao mercado de transferências, preferindo ter podido segurar as pérolas que se revelaram e vão ser felizes noutras paragens em vez de se converterem em bases para um crescimento coletivo consolidado. A maneira correta de olhar para as coisas não passa por perguntar porque não se vendeu determinado jogador, mas sim por questionar as razões que levaram à sua saída. E essas, atenção, não têm sobretudo que ver com a consciencialização de que aquele é o momento em que o jogador pode valer mais. Há outras variáveis muito mais relevantes em equação.
O Sporting não vendeu Palhinha na sequência de um grande campeonato em que ele garantiu a titularidade da seleção porque pôde. Não vendeu Pedro Gonçalves depois de uma Liga que ele acabou como melhor marcador, com 23 golos, porque pôde. Os dois valem menos hoje? Sim, a começar pelo facto de hoje tanto um como o outro já terem a seu lado alternativas que lhes roubam espaço de afirmação e garantem a qualidade na sua ausência. Coisa que há um ano não acontecia. As duas coisas estão evidentemente ligadas e só a ganhar repetidamente se pode ter ambas – progressão desportiva do coletivo e valorização de mercado do individual. Se, no final da Liga, o Sporting conseguir segurar Matheus Nunes, se o Benfica conseguir ficar com Darwin, se o FC Porto não for forçado a vender Vitinha, Otávio ou Uribe e o SC Braga puder continuar a ter Carmo e Horta, os quatro ficam mais ricos naquilo que interessa, que é o potencial desportivo. O problema é que isso nem sempre é possível. E não tem que ver apenas com a receita que se garante: vir agora dizer que o Sporting não precisa de vender porque vão entrar os 40 milhões do PSG por Nuno Mendes mais outro tanto da Liga dos Campeões é terrivelmente simplista, porque se tem de lidar com outras contas que não as próprias. A começar pelas dos jogadores, que têm carreira curta e ambições compridas.
Os nossos clubes são vendedores por várias razões, a primeira das quais o facto de perderem dinheiro de forma regular todos os anos – e isso chegaria para se concluir que teriam tudo a ganhar em tornar a nossa Liga um negócio mais credível, apetecível e rentável em vez de o destruírem a cada tentativa de condicionamento ou de auto desresponsabilização aos olhos dos adeptos. Mas essa não é a única razão. Os nossos clubes são vendedores ainda porque têm o vício do mercado. E têm esse vício não só para manter feliz a turbamulta, que assim pode celebrar vitória no campeonato das transferências – é ver os milhões brandidos pelos adeptos nas primeiras páginas dos jornais – e iludir-se com os reforços que aí vêm, como também porque se tornam excessivamente dependentes de empresários que lhes safam exercícios mais complicados com uma venda inflacionada e em troca exigem compras igualmente bem acima das suas prioridades. Os nossos clubes são vendedores ainda porque os próprios jogadores querem muitas vezes sair daqui para fora, seja porque vão ganhar mais dinheiro – e mesmo que para tal haja possibilidades financeiras, não se pode aumentar um de forma brutal, para não destruir o equilíbrio de balneário – ou porque têm o sonho de jogar numa das cinco grandes ligas. E muitas vezes são também eles a pressionar para sair.
Resolver este círculo vicioso não é fácil nem vai acontecer da noite para o dia. Leva tempo. E passa também por convencer os adeptos de que é geralmente preferível manter um grupo, sem grandes adições, a recomeçar do zero, mesmo que os especialistas e os olheiros digam que aquele avançado argentino e aquele defesa paraguaio são a oitava maravilha do Mundo e encaixam quem nem uma luva na ideia do treinador. Rúben Amorim percebeu isso e diz que vai servir-se da garantia da Liga dos Campeões para pressionar a direção para manter os seus melhores jogadores. Se o conseguir, estará mais perto de ganhar. Mesmo que daqui por um ano eles valham menos no mercado.
O conceito de campeonato das transferências é mesmo real, por vezes a lógica é invertida por alguns adeptos que celebram uma venda não como algo negativo mas como uma vitória face aos rivais. É dificil explicar mas dentro da mesma lógica há gente que celebra muito mais um segundo lugar que uma vitória na final da Taça de Portugal quando para mim um troféu é sempre o objectivo máximo de cada equipa.
"As taças é que ficam nos museus e, sobretudo, nas memórias dos adeptos – e ainda não vi ninguém ir para o Marquês de Pombal celebrar uma transferência". Lapidar. Podemos até fingir, mas ninguém fica mais feliz com uma boa transferência do que com um troféu. O campeonato das transferências aproveita, sobretudo, aos clubes que nada ganharam e precisam do toque a reunir. Que na maioria das vezes tem efeito meramente conjuntural. A alegria passageira esfuma-se com o fracasso desportivo. O dinheiro não só ajuda, como é essencial, mas a abundância nunca foi boa conselheira dos clubes portugueses (e aqui fecho o universo aos três grandes, porque nos outros, se calhar à exceção do Braga dos últimos anos, abundância é palavra quase inexistente). Basta ver o recente investimento milionário do Benfica, com zero títulos. Ou os milhões que o Porto desbaratou no pós conquistas europeias, com a venda de metade do plantel a peso de ouro, e cujos resultados foram ficar na penúria e entregar a hegemonia desportiva ao rival da Luz. Ou ainda o dinheiro desembolsado pelo Sporting em alegados craques de qualidade duvidosa que tiveram como reflexo a agonia desportiva ano após ano. Nos últimos tempos, foi em alturas de aperto que os clubes melhor se deram desportivamente. O Porto, com Conceição, recuperou a tal mística e conquistou títulos com planteis, convenhamos, fraquinhos. O Sporting, sendo certo um investimento avultado no treinador, socorreu-se da prata da casa e em jogadores da nossa liga para ser campeão, o que já não acontecia há quase duas décadas. O Benfica parece agora querer inverter caminho para regressar às bases, mas nunca consegue libertar-se completamente do síndrome das contratações sonantes. Nem de rotular de craques de milhões os seus jogadores que fazem meia dúzia de jogos em condições. São as dores de ser o clube com mais adeptos, mas também reflexo de uma cultura que demora tempo a mudar. Tudo somado, voltamos ao princípio, no museu e nas memórias dos adeptos estão as taças e não os cheques das transferências.